A política externa de Lula e o óbvio ululante

 


Há mais de uma década o Brasil vive o clima permanente de “barata voa”, onde cada incidente é interpretado com uma histeria cada vez mais incapacitante. Em se tratando da política externa de Lula em seu terceiro mandato a coisa não poderia ser diferente. Essa polêmica não resiste aos fatos, já que Lula prioriza as relações com o Sul global (não confundir este conceito geopolítico com hemisfério Sul como alguns jornalistas chapados de antipetismo fizeram semana passada). Fernando Henrique Cardoso fez sinalizações, mas foi Lula que aprofundou a política e deu os passos mais importantes para a consolidação dos BRICS. 


Nos últimos dias Lula fechou importantes acordos com Rússia e China, acertou mais ainda ao definir que os negócios com a China não serão mais feitos em dólar americano. A histeria de quem acha que tapinhas nas costas valem mais que dinheiro é o que pautou o debate. Queriam que o Brasil não conversasse com parceiros históricos para não melindrar os americanos. 


Ainda sobre os americanos, reparem: a exigência de visto para americanos recebeu mais indignação doméstica que os afetados diretos, como se a política externa não tivesse um de seus pilares na reciprocidade. Dias depois o governo americano pediu que o Brasil reconsiderasse. Basta o governo ter firmeza que poderemos ter algum ganho nesta seara. 


Nestas questões Lula agiu de forma correta e altiva. Repetiu os americanos, que mesmo antes de Trump pensavam em “America First”. O que é indefensável mesmo a luz do pragmatismo são as declarações absurdas sugerindo que a Ucrânia tem a mesma responsabilidade na guerra que a Rússia ou que Kiev deva ceder a Crimeia a Putin para resolver o conflito. Volodymyr Zelensky ser um bufão populista não alivia a barra do carniceiro Vladimir Putin e sua política expansionista que segundo o próprio entorno pretende restaurar “a glória do Império Russo”.


O que Lula faz não é novidade, em outros períodos marcantes se tentou conduzir o Brasil por um caminho que não fosse a tutela dos Estados Unidos. Podemos citar a Política Externa Independente de San Tiago Dantas durante os governos Jânio e João Goulart e o “Pragmatismo Responsável” dos militares. Este último foi paradoxal, já que a mesma ditadura que perseguia esquerdistas no Brasil tratou de reconhecer os governos socialistas estabelecidos durante o processo de independência da África. O mais relevante foi Angola: quem venceu a guerra civil foi o MPLA, facção marxista cantada por Chico Buarque. Os militares não quiseram saber dos gostos particulares, mas do possível retorno que o Brasil teria auxiliando irmãos africanos na construção de suas soberanias. E o que dizer do acordo com os comunistas da Alemanha Oriental para a construção das usinas de Angra 1 e 2?


Bater bumbo para americanos e europeus por lealdade canina não é apropriado para um gigante, deixemos isso com os vira-latas. Também não é razoável presumir que alguns necessariamente são vítimas da história por não se sentarem entre os senhores. Alguns esquerdistas fingem não ver os neonazistas do Grupo Wagner ao lado de Putin enquanto acusam até o judeu Zelensky de nazi por conta do Batalhão Azov, quando a real é que por lá há nazis para todos os gostos. Considerando que Lula não é nenhum tuiteiro inconsequente, convém agir com responsabilidade.


Não é demais lembrar o óbvio, ainda mais quando tão evidente que ulula (salve, Nelson Rodrigues!). O Brasil é um país em desenvolvimento que deve perseguir agendas que o beneficiem. Nosso papel quando muito é arbitrar conflitos, não tomar parte neles. Devemos reivindicar o papel de líder dos países em desenvolvimento, mantendo relações amistosas com as potências ocidentais dentro daquilo que nos interessa. A razão de nossa existência não é servir de tapete para americanos ou babador para russos raivosos, mas ocupar o espaço que nossa vocação geopolítica nos reserva.[left-sidebar]

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