Sim, o nazismo não é contemplado pela liberdade de expressão
Já mencionei Monark por aqui, talvez fosse desnecessário esticar o chiclete porque o ponto central deste debate já é conhecido. Se antes a afirmação era sobre os supostos direitos que os racistas tem a liberdade de expressão, agora o debate adquiriu novos contornos quando se conjecturou se nazistas não deveriam ter o direito de organizar um partido. Infelizmente a sensação de cansaço se dá por ser um assunto correlato ao controverso Joe Rogan, que serviu de inspiração para a criação do Flow Podcast. Depois da polêmica com Neil Young a internet descobriu que o apresentador e ex-lutador fez diversos comentários racistas em seu programa, levando o Spotfy a remover mais de 70 episódios do podcast de sua plataforma. Será que a liberdade que ele reivindicava tinha este propósito? E não há desculpas: Monark já passou dos trinta, sempre teve a disposição meios de buscar informações e a tudo deu de ombros.
Evidente que terminaria desta forma. Os anos de perseguição, arbítrio e violência marcaram profundamente a comunidade judaica, povo que era perseguido muito antes da ascensão do nazismo. Este processo consolidou o sentimento de pertencimento e fez surgir inúmeras organizações que defendem a dignidade desta gente, a memória dos episódios amargos e a possibilidade (que parece longínqua) de que as pérfidas aspirações antissemitas fiquem no passado.
Será que não ocorre a ninguém que este debate é no mínimo estranho em um país assolado pela crise econômica, cujo grosso da população não dispõe de acesso à educação, saneamento básico, segurança alimentar ou segurança jurídica? Realmente o nosso maior problema é a proibição de organizações nazis na legalidade? Decerto que não. Nosso problema são os mancebos da classe média que crescem alheios a realidade aberrante do próprio país. São aqueles filhos dos homens de bem, que formam sua compreensão de mundo a partir dos horizontes estreitos do playground de seus condomínios. Não convivem com o Brasil real, daí são presas fáceis para todo tipo de bestiário importado dos Estados Unidos.
Há que se reforçar o básico: mesmo nas Escrituras Sagradas o verbo é o elemento que antecede a Criação. Na concepção terrena se dá algo parecido (ainda que menos grandioso), já que primeiro somos dotados da ideia, que uma vez verbalizada (por texto ou fala) gera consequências a altura do que foi concebido pelo pensamento. Imaginar um partido nazista deveria ter como consequência obvia a ameaça que esta organização traria para o Estado democrático de direito, uma vez que o ideário deste partido prevê os judeus como uma ameaça que levou seus “Founding Fathers” a propor a odiosa “Solução Final”.
"E o comunismo?", perguntará o jovem imberbe atormentado pelo fantasma daquilo que não viveu. O Comunismo jamais foi encarado da mesma forma porque, apesar de todas as contradições do socialismo real, a matança em si nunca foi um objetivo declarado e basilar para sua realização. Há frases soltas, declarações e um rastro de sangue que contrariam as boas intenções desta ideologia igualmente questionável, mas a violência não é condição sine qua non para a existência de um partido comunista. Fosse isto não haveria partido comunista no Brasil.
Igualmente forçoso é utilizar a Constituição Americana como exemplo do que quer que seja. Por lá se permite a existência de um partido nazista, como citou o confuso Glenn Greenwald em sua tentativa de passar pano para a alt-right (por puro rancor dos “liberals” de seu país natal). Quem defende a tese argumenta ainda que esta organização nunca foi expressiva, logo a permissão para que nazistas defendam estas ideias não é uma ameaça.
Não poderiam estar mais equivocados. O Partido Nazista só existe nos Estados Unidos porque o grosso das ideias defendidas por aquele grupo convergem com outras organizações supostamente respeitáveis. O Partido Democrata já congregou supremacistas brancos em suas fileiras, sendo substituído pelo Partido Republicano a partir dos anos 60 (os Republicanos queriam muito ganhar no Sul, por isso abandonaram bandeiras históricas para engajar os sulistas racistas decepcionados com as novas diretrizes democratas). Em pleno 2022, estados como Texas, Alabama, Geórgia e Flórida aventam a possibilidade de adotar legislações eleitorais que dificultam a participação de negros no sufrágio universal (a bronca se deu após a vitória de Biden sobre Trump em algumas destas localidades). Em resumo: neste cenário o Nazi Party se torna apenas um grupo de cosplayers de mal-gosto, o nazismo é perfeitamente dispensável quando se tem republicanos engravatados com saudades da segregação.
Podemos ir além, já que os Estados Unidos ajudaram a inspirar as políticas eugenistas da Alemanha Nazista com suas leis segregacionistas. Igualmente sem sentido é a afirmação de que esta permissão não traz consequências. Quem acompanha o noticiário sabe que volta e meia um neonazista comete algum ato de terrorismo doméstico. Diga-se de passagem, a maioria dos atentados em solo americano são promovidos por cidadãos daquele país. Brancos na maioria dos casos.
Se algo serve de lição no dia de hoje, é que a suposta defesa da liberdade pode ter objetivos distintos. Alguns defendem a liberdade de expressão como acessório indispensável ao exercício da cidadania universal. Outros a defendem como meio de proporcionar meios para enfraquecer a democracia no médio e longo prazo. Permitir discursos extremistas, fundamentalistas e iliberais é tão prudente quanto derrubar as colunas da própria residência. Se permitirmos qualquer discurso, é bem provável que estejamos engordando os corvos que nos arrancarão os olhos amanhã.[left-sidebar]