Liberdade de expressão ou direito à barbárie?
O episódio envolvendo o podcaster Joe Rogan e o músico Neil Young não para, forçando a debates cansativos e intermináveis acerca da liberdade de expressão. O que não podemos fazer nesta hora é fugir, já que o paradoxo permanecerá estendido na área ainda que não falemos sobre ele. Felizmente o próprio Rogan salientou seu respeito por Neil Young e não incitou radicais a atacarem o veterano do rock, deixando este expediente diabólico ao execrável Elon Musk (cujos conceitos de liberdade e direitos foram forjados no apartheid, ou seja, tudo o que ele possui e é se deve ao regime segregacionista sul-africano). Este apoio se soma ao endosso que recebeu de supremacistas brancos, radicais e fundamentalistas de várias vertentes e a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro, aquele que pode se tornar réu por crimes contra a humanidade em Haia. Significa.
A maioria das pessoas razoáveis há de entender que o direito ao contraditório contempla até questões que causam desconforto a alguns de nós. Um texto abominável como aquela peça de ficção macabra de Antônio Risério na Folha de São Paulo é um exemplo, bem como os livros farsescos de Leandro Narloch esvaziando o peso da escravidão e igualando negros e brancos naquele processo. Tudo muito asqueroso, mas não fere a lei.
Permanece inegável, porém, as consequências de conceitos verbalizados. Um artigo porco e desonesto que reduz qualquer militância a identitarismo com cores marxistas criminaliza a luta por direitos civis e torna qualquer negro antirracista em aspirante a Marcus Garvey. Uma distorção pontual sobre Palmares leva a crer que cidadãos que fugiram do cárcere privado eram tão criminosos quanto os traficantes ou terroristas de nosso tempo, ignorando completamente o fato de que todo homem possui o direito natural a liberdade e que resistir a tirania (ainda que de forma violenta) nada mais é que um recurso de legítima defesa. Sim, a escravidão é tão abominável que inspirou uma quantidade de hinos e canções patrióticas que pontuam a escravidão como o pior que pode acontecer a um ser humano, vide o "Rule, Britannia" gritando em plenos pulmões que os britânicos jamais seriam escravos – ainda que escravizassem meio mundo.
Voltando a vaca-fria, os conceitos verbalizados tem poder de interferir ou transformar a realidade. Todo mundo conhece alguém que mesmo imunizado e alheio a influência do curral bolsonarista acaba se impressionando com algum factoide parido pelo gabinete do ódio. Dia desses um jovem quase da minha idade me transportou no Uber, mesmo descontente com a condução da economia (o cara perdeu o emprego e agora vê o preço do combustível minando seus poucos ganhos no aplicativo) confessou ter medo da terceira dose porque “jovens estão morrendo de ataque cardíaco após tomarem a vacina”.
Aos fatos: o antissemitismo só levou a Alemanha a embarcar no Terceiro Reich por conta dos muitos anos de pregação de ódio e teorias conspiratórias contra os judeus. Desde tradições orais como a lenda do Judeu errante até os Protocolos dos Sábios de Sião sedimentaram aquela aversão a este povo. No final das contas aquele episódio pode ter sido justamente uma reação a concessão de cidadania aos judeus por toda Europa, já que até meados do século anterior muitos eram apátridas.
É aqui que vamos a outro aspecto: muito provavelmente essas demonstrações de ódio mais explícitas que vemos nos últimos dias e toda a desinformação que provoca mortes seja uma reação ao avanço de certas pautas. É caso de se observar. O que não nos escapa é que sim, ideias possuem consequências. A própria tradição judaico-cristã que tanto roda nas bocas de Matilde descreve a criação partindo do verbo, logo não podemos desconsiderar esta gênese. Estes mesmos que defendem o direito de dizer absurdos pré-iluministas são muito hábeis em responsabilizar Marx, Gramsci e até Saul Alinsky pela propagação das ideias que consideram perigosas. Propagandas que falam de diversidade sexual são atacadas, filmes ou séries que exibam críticas a religião são alvo de pressão e tentativas de boicote. Conhecedores do poder da palavra fizeram a opção consciente pela mentira.
O fato é que estas movimentações pedindo sanções ou freios ao discurso de ódio e negacionismo não necessariamente implicam em graves riscos a liberdade de expressão. É próprio do nosso tempo a profusão de agentes e grupos com capacidade de mobilização para pressionar o debate público e as esferas de poder em prol de seus interesses. No livre mercado das ideias e ações há maior concorrência entre as partes do que a cinquenta ou cem anos atrás, já que muitos potenciais agentes conquistaram alguma capacidade do exercício da cidadania nos últimos anos. Houve um tempo em que o negacionismo, fundamentalismo e amor ao dinheiro se associavam ao poder e simplesmente calava os dissonantes escudado pela parceria irrestrita com aqueles que mandam (isso quando não faziam parte do mesmo grupo). Hoje não há mais o monopólio da força, mesmo com a desproporção entre quem defende o status quo e quem propõe desde reforma pontuais até rupturas mais drásticas. E este processo, meus caros, é irreversível a menos que um cataclismo nos jogue em uma distopia ao estilo Mad Max. [left-sidebar]