A miscigenação não foi uma boa contribuição da escravidão
Lula precisou de poucas aspas para reafirmar o consenso de que a violência histórica do estado e das elites brasileiras contra os negros são apagadas, quando não naturalizadas pelo sistema. Ao aludir a escravidão negra como uma mácula histórica, Lula afirmou com a maior desenvoltura que “a única coisa boa que a escravidão nos legou foi a miscigenação”. Não, a escravidão não contribuiu com nenhum legado positivo para o Brasil, talvez os únicos que possam apontar alguma contribuição desta natureza são os muitos herdeiros de quem fez fortuna com o sangue negro. Este embuste não causaria espanto se fosse dito por um José Múcio Monteiro, por exemplo, que deve a sua destacada posição aos antepassados senhores de engenho. Na boca de Lula requer no mínimo atenção e correção.
É preciso compreender que esta romantização da escravidão remonta ao Império, onde a própria elite escravocrata dizia não haver ódio racial no Brasil. Nossos primeiros pensadores afirmavam a tal democracia racial. O próprio Gilberto Freyre contribuiu para este conceito. O jornalista e historiador Clóvis Moura denuncia esta contradição na interpretação de Freyre, que reconhece violência e desigualdade sem enxergar estes aspectos como fundamentais para esta construção. Em sua “Sociologia do negro brasileiro” Moura destaca que Freyre enxergava nosso sistema escravagista como uma associação entre senhores bondosos e escravos submissos e conformados.
Aos fatos: a miscigenação foi fruto de estupros de mulheres negras e indígenas. Não por acaso os geneticistas Sérgio Maria Pena e Maria Cátira identificaram que 85% dos pretos brasileiros têm uma ancestral africana, mas os homens africanos estão representados em apenas 47% dos pretos – o restante tem ancestrais europeus em sua linhagem paterna. Essa era a demonstração genética do que já se conhecia do ponto de vista histórico, sociológico e antropológico. Os primeiros grupos de colonizadores europeus que chegaram ao Brasil eram formados quase exclusivamente por homens. Por aqui começaram o estupro e casamentos forçados com mulheres indígenas, depois fizeram vítimas entre africanas escravizadas.
Mesmo antes do perfil genético dos negros e pardos ser conhecido já contávamos com ampla bibliografia desmentindo a igualdade racial. Na Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua realizada pelo IBGE em 2021 aponta que pretos e pardos formam 9,1% e 47,0% da população, porém sub-representados entre os brasileiros de maior escolaridade e renda (19,9% e 17,5%). Em cargos gerenciais pretos e pardos são 29,5% contra 69% de brancos. Brancos são maioria entre os cargos gerenciais de alta renda (84,4%). Na contramão pretos e pardos são maioria entre os pobres: 34,5% e 38,4% contra 18,6% dos brancos. São maioria nas favelas, nos subempregos, nas cadeias e nas vítimas de violência policial. A miscigenação à brasileira não foi bom negócio para ninguém.
Evidente que a Inês já é morta, e esta população miscigenada é hoje um trunfo, uma das características mais marcantes de nossa excepcionalidade. Devemos nos orgulhar de nossa gente, mas sem pintar um passado idílico em que nossa construção não foi forjada com sangue. “Ora (direis)”, Lula é de outro tempo e não possui letramento racial como a esmagadora maioria de nós brasileiros. Sim, é fato. Nossa maioria comunga do pensamento estabelecido justamente por quem parasitou escravizados, mas isso não esvazia a polêmica. Enquanto não se compreender o embuste nossos esforços por cidadania serão tão decisivos quanto voos de galinha. Se Lula está apto a exercer a presidência do Brasil também deve ser instado a tomar pé da realidade mais subjetiva, afim de promover justiça e cidadania a todos.
PS: A propósito, tomo a liberdade de fazer algumas indicações sobre o assunto. São elas:
Casa-grande & senzala e o mito da democracia racial, Mateus Lôbo de Aquino Moura e Silva
O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado, Abdias do Nascimento
O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro
Racismo estrutural, Silvio Almeida
Sociologia do Negro Brasileiro, Clóvis Moura[left-sidebar]