As vinhas da indignidade e o compliance de fachada
A operação do Ministério Público que flagrou importantes vinícolas de Bento Gonçalves se servindo de trabalho escravo tem muitas camadas, quase todas envolvendo a aversão de certas elites ao progresso e direitos humanos e o já tradicional cinismo. Embora todas as organizações tenham emitido notas negando responsabilidade no ocorrido, a lei e os fatos nos levam a outra direção.
Vamos começar pelo óbvio: quem contrata um fornecedor ou prestador de serviço deveria ao menos aferir a qualidade e métodos do parceiro. Nenhuma das vinícolas se interessou no bem-estar dos trabalhadores terceirizados. Se fizermos o exercício da condescendência ingênua o mínimo a se concluir é incompetência das três empresas. Incompetência das brabas, já que todas possuem seus núcleos de compliance. Como só foram saber daqueles crimes quando a imprensa divulgou?
Aliás: quem sugerir que estas empresas e seus funcionários agiram por simples imperícia não merece ser considerado mentalmente são. As vinícolas Garibaldi e Aurora foram fundadas na década de 30. A Salton aponta sua criação par ao longínquo ano de 1878, dez ano antes da abolição da escravidão negra no Brasil. Certamente seus gestores ouviram de familiares o quanto a progressão nos direitos civis e trabalhistas "atrapalham" a iniciativa privada, daí o aparente desinteresse (para não dizer dolo) com os terceirizados.
Importante notar que a maioria dos trabalhadores era pretos e nordestinos, cruzaram o país para serem explorados no Eldorado Sulista. Lembra em muito "As vinhas da Ira", clássico de John Steinbeck que mostra o calvário de trabalhadores rurais americanos expulsos de suas terras em Oklahoma que buscam migrar para a Califórnia em busca de dignidade. Adivinhe só: não encontraram.
Os paralelos com "As vinhas da Ira" poderiam ir mais longe, envolvem abuso de poder econômico, marginalização de populações inteiras, políticas de estado que favorecem os ricos e dificultam o acesso dos pobres a Justiça. É bom lembrar da origem do título, sugerido pela então esposa de Steinbeck com base na canção patriótica “The Battle Hymn of the Republic”, convertido no hino evangélico conhecido no Brasil como “Vencendo vem Jesus”. A canção, por sua vez, é inspirada em Apocalipse 14: 19-20:
Os meus olhos viram a glória da vinda do Senhor:
Ele está pisando fora da safra, onde as vinhas da ira são armazenadas;
Ele Deus desferiu o relâmpago fatídico da Sua terrível espada rápida:
A Sua verdade está em marcha.
No Apocalipse o versículo trata da libertação da parcela da humanidade que será salva da opressão e juízo.
O anjo passou a foice pela terra, ajuntou as uvas e as lançou no grande lagar da ira de Deus.
Elas foram pisadas no lagar, fora da cidade, e correu sangue do lagar, chegando ao nível dos freios dos cavalos, numa distância de cerca de trezentos quilômetros.
Sem entrar nas questões subjetivas acerca de fé, a real é que nossa sociedade insiste em modelos que engordam uns e matam centenas (quando não milhares). Não é um modelo sustentável ou desejável, mas a continuidade de uma chaga que formou o Brasil. Se hoje nos pautamos por leis, conceitos de gestão horizontal, sustentabilidade e ESG, nada disso será realmente transformado sem o devido engajamento contra o arbítrio e crueldade. Considerando que as mazelas são produtos próprios da natureza humana, a questão é perguntar quando este tempo de justiça chegará. Se não vier, morreremos todos.[left-sidebar]