O golpista do Corinthians e a racista de Buckingham: compliance e cultura importam
Dias atrás a Família Real britânica precisou lidar com a controvérsia pública envolvendo uma ex-dama de companhia da Rainha (que por acaso é madrinha do Príncipe William). A boa senhora foi racista com uma ativista negra, Ngozi Fulani - CEO da ONG Sistah Space, entidade que acolhe e ajuda mulheres de origem africana e caribenha vítimas de violência doméstica e abuso sexual. O Palácio de Buckingham promoveu um jantar em homenagem a entidades do terceiro setor quando a baronesa Susan Hussey resolveu interpelar Ngozi de forma rude: "De onde você é?". Ngozi respondeu mais de uma vez que era inglesa, até que a nobre apelou: “De onde você é realmente?”, “De que parte da África você vem?” “Mas de que nacionalidade você vem?”, “De onde vem o seu povo?”. A revelação do incidente gerou escândalo e só perdeu folego quando o Palácio de Buckingham publicou nota afirmando que o racismo não deve ser tolerado e que a ex-dama de companhia renunciou ao cargo pedindo desculpas.
Dias depois outra polêmica, desta vez aqui pelos lados de Itaquera. Anunciado como novo nome da comissão técnica do Corinthians, o renomado auxiliar Rodrigo Santana foi do céu ao inferno depois que a imprensa revelou fotos do sujeito na frente de um quartel pedindo golpe militar. Como lama pouca é bobagem, Rodrigo ainda teve sua conta no Instagram rotulada pela própria rede com um alerta de fake news. Isso porque o profissional é contumaz vetor de notícias falsas em favor do futuro ex-presidente Jair Bolsonaro. Em menos de vinte e quatro horas a contratação foi reconsiderada, com fontes próximas ao Corinthians anunciando a desistência. Não significa que o Corinthians não conte com eleitores entusiasmados do capitão golpista em todos os setores - desde a diretoria até o elenco de futebol. O que azedou o clima foram os pedidos por ruptura constitucional, o que é crime.
São casos muito particulares, é claro, mas possuem alguns pontos de convergência. No primeiro temos uma instituição milenar que se fez ainda mais pujante durante o colonialismo. É natural esperar que aquelas pessoas sejam irremediavelmente racistas, mas o tempo torna a vida dos racistas cada vez menos tranquila. Dez ou vinte anos atrás bastaria que a Lady Adolf se defendesse falando ser mulher de outro tempo, que não era nada de mais, etc. A desculpa não cola mais, visto que seu país possui expressiva população negra presente até mesmo entre a nobreza. O maior esportista daquelas terras (e cavaleiro de Sua Majestade) é Sir Lewis Hamilton, famoso por sua militância antirracista. O primeiro-ministro Rishi Sunak é hindu de origem africana e indiana. Lady Hussey escolheu ser racista e a Casa Real até então jamais viu problema nestas falas. Eles sabem mais que ninguém que a monarquia só chegou até aqui por se ajustar aos ditames do tempo, logo a única coisa a se fazer é pedir desculpas e se livrar deste entulho ideológico. É isso ou farão companhia a outras realezas mundo afora, com seus tesouros expostos em museu como lembranças de um passado jurássico.
O caso do Corinthians talvez seja mais elementar: apesar de ser um clube como todos os outros, com sua diretoria ocupada pelos mesmos grupos e o torcedor feito de massa de manobra a ser parasitada, é um fato que o Corinthians se tornou grande pela mística de ser o time do povo. Esta condição fez do Corinthians um símbolo de unidade popular, sobretudo com a inesquecível "Democracia Corintiana". Por aqui se admitem divergentes, mas estes devem assumir sua condição de antagônicos ao espírito alvinegro de luta por direitos. Se Rodrigo Santana fosse mero eleitor do Bolsonaro certamente haveria algum muxoxo, provavelmente menos sentidos que os dirigidos a bolsominions como Fagner e Cássio Ramos. Problema mesmo é acolher no Clube do Povo um cidadão que participa de atos golpistas. Imagine começar o trabalho com antipatia de ao menos metade da torcida. Desgaste desnecessário.
Sabemos que nas internas estes assuntos não são prioridades, seja na Casa Real inglesa ou no Parque São Jorge. Os homens brancos que fazem parte destas organizações se movimentam apenas por inércia. Ninguém ali pretende dispender energia pela causa dos pobres e oprimidos (aliás, nada mais parecido com um monarca ou aristocrata que um cartola de futebol). Esta é a cultura deles. O caso é que os setores prejudicados por este status quo agora possuem brechas e um pouco de espaço, tudo o que eles anseiam é ganhar mais espaço - recuar jamais. Ninguém aceitará ofensas raciais de membros da nobreza como faziam nossos antepassados que apenas sorriam para não pagar o preço da insubmissão. Também não pretendemos aceitar pedidos por golpe militar depois do que foi feito a partir de 1964. Isso é inegociável.
O que resta então? Seguir os pressupostos de Darwin e evoluir. Adotar protocolos rígidos para evitar polêmicas futuras, disseminar na organização que estes pensamentos são nocivos e podem representar prejuízos de toda sorte - desde danos a imagem até financeiros. Reforçar que é melhor que ficar na defensiva. Em resumo, é deixar os mortos para trás as correntes que nos prendem a barbárie. É adotar compliance, se possível com assessoria externa - o que pode conferir imparcialidade na tomada de decisões. Aliás, estes princípios devem ser apresentados como base de qualquer organização, introduzidos aos novos membros como cláusula pétrea. A Casa Real inglesa e a diretoria do Corinthians nem ao menos consideraram estas questões, daí o infortúnio. Belchior deu a letra: "É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem".[left-sidebar]