Elon Musk mostra que bilionários podem muito, mas não podem tudo



Quando Elon Musk anunciou a intenção de adquirir o Twitter acabou provocando um clima de barata voa. Progressistas previram um apocalipse neonazi que haveria de vir com o afrouxamento das normas de uso da plataforma (o que obviamente ofereceria mais folego para a pujante extrema-direita de nossos tempos). Do outro lado do espectro o júbilo foi quase unânime, já que a promessa explícita do excêntrico bilionário era justamente esta. A negociação demorou, mas quando veio não deixou de ser menos impactante. Sobretudo pela ousadia do novo chefe da rede, que ao que parece não calculou o impacto deste movimento. 
 
O novo dono do Twitter não blefou. Um de seus primeiros atos após a aquisição foi passar a navalha na equipe da rede. O CEO Parag Agrawal, o conselheiro Sean Edgett, o diretor financeiro Ned Segal e advogada Vijaya Gadde, responsável pelo departamento jurídico e políticas da comporação foram os primeiros executivos demitidos da companhia. Logo depois o facão passou no andar debaixo. Funcionários foram demitidos por e-mail, outros só descobriram o desligamento quando tiveram seus acessos negados nos sistemas internos. Foi um passaralho. 

Estas decisões administrativas excitaram aquela direita de tacape, já que supostamente poderiam tecer loas ao nazismo e ofender todas as minorias existentes sem sofrer sanções daquela rede. Por aqui os bárbaros nativos vislumbraram a hipótese de defender teorias da conspiração desacreditando o sistema eleitoral brasileiro e a livre pregação de golpe de estado. Um destes logrou êxito de ser notado pelo próprio Musk ao denunciar a fantasiosa censura imposta a usuários conservadores no Brasil. O dono do Twitter o respondeu com certa solenidade sugerindo a revisão dos bloqueios.

Não quero ser portador de más notícias (ainda que me alegre o coração quando a desolação abate o espírito dos extremistas), mas não é assim que funciona o mundo dos adultos. Ações tem consequências, nenhum homem é uma ilha e nenhuma organização privada está acima dos estados e suas leis. O mercado também funciona, impondo aos viventes a supremacia do poder de escolha do capital e precificando as implicações de qualquer ato. Óbvio que com o Twitter não seria diferente. 

Desde que Musk desmantelou os mecanismos de controle que tornavam o Twitter "um pouco menos gentil" com extremistas de direita, o que se viu foi a fuga em massa de anunciantes. Não estamos falando de gente irrelevante: Oreo, Pfizer, Coca-Cola, American Airlines, Audi, Volkswagen, Unilever, Disney, Häagen-Dazs e General Motors. A primeira reação do Lex Luthor sul-africano foi despejar ira com um tweet raivoso em que responsabiliza a pressão de grupos progressistas sobre os anunciantes para a perda destes parceiros. "Eles estão tentando destruir a liberdade de expressão nos Estados Unidos". 

Falso, é claro. Mesmo nos Estados Unidos a liberdade de expressão não absoluta, posto que pode ser pautada pela sociedade civil. Articulações como boicotes e desinvestimento são ações legítimas, não violentas e que produzem efeito relativamente imediato. Mesmo no auge de seu delírio Musk sabe que bilionários podem muito, mas não podem tudo. Ele não pode, por exemplo, forçar seus anunciantes a queimarem suas reputações em um ambiente cada vez mais acolhedor para nazifascistas, pedófilos e autoritários.

Aliás: o tal Justiceiro da Liberdade passou a aplicar sanções ridículas em personalidades que ironizam a figura ridícula que ele é. As recorrentes citações a seu falso compromisso com a liberdade de expressão se transformam em atestados de constrangimento, já que até cartunistas e jornalistas consagrados estão entre as vítimas da purga promovida pelo falso self-made man. Tolerar nazismo e não aguentar deboche é exatamente o que se espera de um herdeiro do apartheid. 

No que diz respeito a atuação do Twitter mundo afora, cumpre lembrar que nenhuma corporação está acima dos estados nacionais. A rede do passarinho azul pode ter seus protocolos, mas todos subordinados ao ordenamento de cada país. Tanto é verdade que não houve inflexão na derrubada de perfis golpistas que questionam a legitimidade candidatura de Lula ou que agora pedem golpe de estado. Elon Musk pode sinalizar o que for, mas se há alguém que sabe que a plataforma deve atuar conforme a legislação de cada país é ele. Importante ressaltar que os limites impostos pela lei e a eventual retaliação de anunciantes são elementos naturais do que se chama mercado, são previstos pelo liberalismo como características naturais da sociedade civil e do estado. Não há nada de socialista ou de "woke" aqui.

O que temos aqui é algo relevante graças ao tamanho da organização envolvida, a natureza de seu ofício é justamente amplificar o debate público e o entretenimento. Por mais que não haja nenhum grande concorrente no horizonte a possibilidade de inviabilizar a rede existe. Implodir os mecanismos de compliance, permitir que a ferramenta se converta em Disneylândia do extremismo, tratar com desrespeito funcionários e executivos que dedicaram anos a companhia e lidar com a rede como um moleque encapetado que desmonta o próprio caminhãozinho não é um bom caminho. Para nós usuários o caso pode render algum contratempo até que outra rede se consolide, mas quem perderá mais é o cidadão que demonstrou inequívoca falta de habilidade com o novo brinquedo. Considerando que Musk é tão razoável quanto uma mula, é questão de tempo até que os conselhos do Twitter e da Tesla reagirem contra o déspota não esclarecido.[left-sidebar]
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