A diretora do Flamengo não sabe, mas Responsabilidade Social não é distribuir esmolas
A polarização política e divisão social estabelecidas nos últimos anos erodiram as bases da civilidade e cidadania. Quer dizer, ao menos na perspectiva de alguns brasileiros que se veem desobrigados a seguir protocolos e venerar normas de urbanidade e respeito com seus compatriotas. Para estes a outra parte deve ser enxovalhada, subjugada e talvez aniquilada. Que o diga a diretora de responsabilidade social do Flamengo, Ângela Machado. Inconformada com a vitória de Luís Inácio Lula da Silva, a dirigente do clube usou suas redes sociais para postar ataques xenofóbicos contra nordestinos.
O caso é cheio de contradições e idiossincrasias. Ângela é natural de Aracaju, Sergipe. Sua formação, pasmem, é Serviço Social. Com a assunção do marido Rodolfo Landim à presidência do clube, ganhou a diretoria social do Flamengo. A impostura nas redes é contraditória não só com a história do time com maior torcida no Brasil (e que só é tão grande graças aos milhões de torcedores nordestinos) como incompatível com o próprio conceito de responsabilidade social.
O incidente traz a tona a compreensão torpe que se tem do tema. Para muitas organizações responsabilidade social não passa da distribuição de esmolas, do compartilhar migalhas em ações inócuas e pontuais que não necessariamente impactam o meio em que estão inseridos. Muitos gestores enxergam o conceito como bobagem esquerdista, outros apenas como meio de marketing para tirar fotos bonitinhas que humanizam suas empresas aos olhos da sociedade.
É evidente que o conceito é mais amplo que os estreitos horizontes dessa turma. Responsabilidade social não é explorar o marketing do assistencialismo em benefício próprio, ainda que estas ações tragam retorno positivo para qualquer organização que as implemente. Existe um uso espúrio destas práticas com pouco ou nenhum compromisso com a sociedade, uma denúncia importante desta exploração é retratada no filme "Quanto vale ou é por quilo?", de Sérgio Bianchi (2005). Aliás, o interessante do filme é justamente a analogia entre a solidariedade de fachada e a escravidão negra. Afinal de contas a exploração da miséria pelo falso marketing social guarda muita semelhança com o parasitismo de seus semelhantes praticado séculos atrás.
O conceito, diga-se de passagem, surge primeiro em trabalhos dos pesquisadores Charles Eliot e Arthur Hakley entre 1906 e 1907. A recepção inicial foi fria, atribuiu-se aos acadêmicos supostos princípios socialistas que desacreditaram suas contribuições. A resistência começou a ser vencida quase cinquenta anos depois, quando o economista Howard Bowens publica a obra "Social Responsabilities of the Businessman", descrevendo o papel social e atribuindo responsabilidades das empresas privadas no quadro social estabelecido. A influência desta obra foi determinante para o surgimento de associações e grupos de interesse em torno do tema, que passou a nortear a moderna administração e gestão de pessoas.
Como já foi dito, o papel da responsabilidade social não é o marketing da miséria ou a doação de esmolas. Ao contrário, trata-se de exercer a cidadania por meio da iniciativa privada, de retornar a sociedade parte dos lucros obtidos, é promover ações de impacto em sua comunidade, preservar o interesse comum e trazer pela mão aqueles que ficaram para trás. Além de reforçar a ética e respeito às leis, estas empresas atuam com base em princípios de solidariedade que reforçam o valor humano de suas organizações. Em última instância, responsabilidade social é o compromisso com o público interno e externo que faz transforma as organizações em agentes vivos da história. A transformação social promovida por empresas transcende a mesquinhez aparente dos negócios e as torna indispensáveis para a coletividade.
Escrevo sob suspeição, mas com indignação por atuar no setor e ver nas declarações da Diretora de Responsabilidade Social do Clube de Regatas Flamengo a visão pequena de quem não consegue se enxergar em seu semelhante. É um pressuposto arcaico onde os mais afortunados se enxergam como superiores, ignorando as distorções de nosso sistema e certa história suja por trás de nossas mazelas sociais. O compromisso da responsabilidade social é antes de tudo uma ruptura com a barbárie, já que entendemos que a sustentabilidade do sistema depende de um consenso mínimo de justiça social. Que estas ações decorrem das políticas públicas de estado e devem ser obrigatoriamente complementadas pela sociedade civil. Que a ascensão dos que não tem nada será benéfica para todos, inclusive para os poucos que já tem muito, já que viverão em uma sociedade mais estável, menos desigual e por tanto, menos violenta. Que apenas os muito limitados e os muito canalhas dividem a sociedade entre os que produzem e os inúteis, uma fachada entre senhores e escravos. Quem tem o mínimo de sofisticação sabe bem que esta selvageria é insustentável para o capitalismo moderno, já que se perde capital humano e grandiosas oportunidades de crescimento para a própria sociedade.
Espero sinceramente que a sra. Ângela Machado possa compreender a degradação moral de seu pensamento e seu total desacordo com a história.[left-sidebar]