Crônica de um golpe anunciado
Não costumo comentar muito, mas fiz parte do Movimento Brasil Livre até 2019. Pois é, todos nós temos nossos esqueletos no armário. O caso é que minha saída tumultuada se deu na esteira do arreganho bolsonarista, mais precisamente por ocasião da primeira grande manifestação golpista convocada pelo presidente Jair Bolsonaro. A época ele mentia e manipulava seus apoiadores pois queria o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal como seus despachantes. Em uma transmissão do MBL externei minha indignação citando um texto de Reinaldo Azevedo. Integrantes do gabinete do ódio recortaram o vídeo para atingir o movimento, jogando meu nome aos cães raivosos que se dizem patriotas. Aquilo foi a gota d'água para sair do grupo, que não me defendeu em momento algum - tinham medo de perder capital político defendendo a democracia. Tudo o que se vê é a crônica de um golpe anunciado.
Na época eu já vivia um desgaste interno, minhas posições não eram as mesmas do movimento e eu permanecia por simples pertencimento. Era como o marido que vive um casamento falido e permanece em casa por conta dos filhos. A convocação golpista e os ataques que sofri foram a pá de cal no meu direitismo, uma pancada muito dura, porém necessária para meu crescimento. Desde então segui minha vida defendendo democracia e justiça social sem medo de ser feliz. Creio que não houve um dia em que não tenha dito a alguém que o atual governo tinha viés iliberal, pretensões autoritárias e uma agenda golpista. Também não se passa um mês sem que alguém me escreva pedindo desculpas por subestimar o golpismo de Jair. Pois é...
O que testemunhamos nestes últimos dias nada mais é que a continuidade daquela agenda, o objetivo máximo do bolsonarismo é solapar a Constituição. Para se perpetuar no poder Bolsonaro passou o Brasil nos cobres, garantiu bondades no atacado e comprometeu até o orçamento do próximo ano. Conseguiu crescer alguns pontos, mas não o suficiente para prevalecer sobre seu adversário nas pesquisas. O desespero e a índole criminosa levaram o governo a tentar outros apliques, entre eles a tese fraudulenta das inserções eleitorais não veiculadas por emissoras de rádio em favor do adversário. Assim que a mentira foi desbaratada o governo sacou outra carta da manga: atrapalhar o acesso de eleitores às urnas com blitzes e bloqueios ilegais concentrados na região Nordeste, principal reduto eleitoral de Lula. Falharam novamente, já que a imprensa, a oposição, a justiça e os eleitores agiram com rapidez. Quando o resultado foi proclamado pelo Tribunal Superior Eleitoral e reconhecido rapidamente por autoridades públicas e governos estrangeiros, parecia que a guerra havia chegado ao fim. Ledo engano.
Nem bem o domingo começou e os atos golpistas começaram a tomar forma. Milhares de extremistas se articularam país afora, bloqueando estradas e causando prejuízos para uma série de negócios - principalmente o agro, setor estratégico para o próprio bolsonarismo. O aparente golpe tabajara evoluiu até que os extremistas ocupassem a Rodovia Hélio Smidt, que dá acesso ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. Enquanto cargas se perdem em nosso vasto território, voos domésticos e internacionais foram cancelados graças aos partidários de Jair. Pessoas perderam cirurgias, vítimas de várias doenças e acidentes sofreram transtornos para chegar a hospitais e atos de violência pipocam em toda parte. Enquanto o caos toma forma o presidente da República permanecia recluso em seu palácio sem reconhecer a derrota. Em vários pontos do país falsas notícias de reconhecimento de fraude eleitoral e prisão do ministro Alexandre de Moraes animavam os golpistas. De várias partes surgem vídeos mostrando a conivência da PRF com a baderna, a mesma que atuou para atrapalhar eleitores de Lula no domingo.
O roteiro é claro: os golpistas querem tumulto. Um cenário de desordem generalizada serviria para que o próprio governo Bolsonaro convocasse as Forças Armadas para reestabelecer a ordem. O problema (para eles), é que não há ambiente para uma virada de mesa. Não há apoio suficiente internamente, não há respaldo algum entre as potências estrangeiras ou vizinhos no continente. O bolsonarismo sempre foi um pária, e como tal foi tratado. Agradeçamos quem teve a ideia de convocar aquela coletiva golpista em que o presidente desacreditou nosso processo eleitoral diante de embaixadores em Brasília. Saíram todos dali certos de que estavam diante de um sociopata, que isto demandava cuidado. O resultado foi uma inédita articulação entre as representações estrangeiras para que o novo governo fosse imediatamente reconhecido, fato que começou com uma nota da Casa Branca assinada por Joe Biden e publicada menos de quarenta minutos após a proclamação do resultado. Quase simultaneamente outras notas vieram, o que apenas afogou Jair em sua própria indignidade.
Claro, o presidente não reconheceu a derrota. Não falou em transição ou desejou sorte ao adversário para que faça um bom governo. Não apenas pela mediocridade que lhe é própria, mas para não ser responsabilizado por nenhuma articulação que se dê nas ruas - como é o caso dos bloqueios criminosos que se vendem como atos espontâneos. Ao comentar os atos golpistas se limitou a dizer que são estratagemas próprios da esquerda, que defende a propriedade privada e não deseja atos de violência. Isso o separa dos terroristas que agem em seu nome, mas não se engane: a hipótese do presidente estar envolvido nestas movimentações não deve ser descartado. Vamos lembrar que Jair articulou um atentado contra a adutora do Guadu e explosão de bombas em quartéis, o que lhe custou uma saída tumultuada do Exército e cacifou sua primeira eleição. Bolsonaro também era agitador de greves ilegais em corporações militares como a paralização da Polícia Militar do Espírito Santo. Quando irrompeu uma greve policial já no seu governo, Jair sinalizou para os amotinados como se fossem heróis - chegou a enviar o comandante da Guarda de Segurança Nacional para tecer loas aos terroristas de farda. O coronel Aginaldo (marido da extremista Carla Zambelli) chamou a súcia de "heróis". Eram heróis para o bolsonarismo porque causaram dissabores para a família Ferreira Gomes.
A fala de Jair mais cedo é só uma senha para a continuidade do golpismo mais ordinário que este país já viu. Se em 1964 houve uma articulação explícita e uma coordenação internacional, em 2022 o golpe se vale de mentiras, distorções e muito vitimismo. Bozó já declarou ter vencido A colheita macabra de Jair depende da semeadura que ele preparou nos últimos anos através de uma lavagem cerebral coletiva, mas ela não é suficiente para arranjar fiadores de peso para o golpe. A consequência óbvia é tumulto, desordem e desconfiança, além da divisão que deverá sobreviver ao próprio Bolsonaro. Mais atos golpistas virão, exigindo da sociedade firmeza, serenidade e coragem. O que importa é que eles já estão derrotados, a esperança já venceu o medo.[left-sidebar]