Não há mal que sempre dure, nem bem sem terminação

 



Quando moleque li uns versos da baiana Sônia Robatto que se tornou uma referência em casa: "De como Mariquinha de Souza Leão, neta do Lampião, estragou uma festa de São João". É a história de uma suposta neta do Rei do Cangaço, garotinha mal-educada e petulante que a todos desafiava com sua grosseria e truculência. A pequena narcisista resolve entrar de cavalo em uma festa de São João mesmo diante dos protestos do anfitrião. Deixando claro que "estava para ver quem lhe dissesse não", Mariquinha adentrou a celebração montada, para espanto dos presentes e completa humilhação do dono da festa. Lá pelas tantas o cavalo se assusta com os fogos e dispara com a menina monstro no lombo. O acidente que jogou Mariquinha no lamaçal da chacota poderia ser evitado caso a mesma fosse minimamente razoável. A introdução do infortúnio da bruta Mariquinha é antecipado por versos que ainda repetimos em família como piada interna:

Não há mal que sempre dure,

nem bem sem terminação.

Prestem atenção, meus amigos,

que isto sirva de lição

pra todas as pessoas

que não têm educação.

Esta memória infantil me ocorreu quando vi o presidente da República driblando a imprensa ao se recolher mais cedo neste domingo. Derrotado e humilhado pela história, Jair Bolsonaro se viu envolvido pela própria obra. Sendo ele uma completa nulidade em termos práticos e um marginal em termos objetivos, Bolsonaro foi dormir de couro e cabeça quente. Compreensível, já que entrou para a história como o primeiro presidente a ser derrotado em uma tentativa de reeleição desde que um segundo mandato foi permitido. Pior: Bolsonaro foi crítico de Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff, além de antagonista de Lula desde 2018. Todos os ex-presidentes eram seus desafetos, todos eles foram reconduzidos e ele não. 

O projeto de Jair era insustentável no longo prazo, mas muito sólido em representatividade e apoio. A ideia do militar convertido em fora da lei era fazer voltar o relógio da história. Inimigo declarado dos Direitos Humanos, da preservação ambiental, dos direitos civis e de qualquer concepção de igualdade e equidade, Bolsonaro despertou nos brasileiros esta convergência ancestral ao obscurantismo. Prometeu um salto de cinquenta anos para o passado, se comprometeu na construção de um Brasil menos plural onde as relações sociais deixassem de lado as pequenas concessões que o sistema fez a minorias. Seu reich miliciano seria erigido em cima do sangue de indígenas que não teriam mais terras demarcadas enquanto suas reservas receberiam mineração e garimpo. No cenário externo nossa atuação passou a ser ideológica, queimando pontes e afastando aliados estratégicos em prol de governos iliberais que convergiam com a barbárie bolsonarista. O ideário de Jair era uma ameaça em várias frentes.

Esmiuçar o descalabro destes anos não é tarefa fácil para os acadêmicos e especialistas, quanto mais para um texto de blog. O fato é que a esperança tomou forma quando Lula foi solto após 580 dias de cárcere. O ex-presidente recusou o exílio, recusou o semiaberto e sinalizou que sairia apenas quando a Justiça considerasse que seu processo foi parcial. A vitória veio após as revelações da Vaza Jato, quando o deus ex machina se operou pela mão de hackers que revelaram ao mundo a sordidez da República de Curitiba. Dali em diante o petista passou a figurar entre os pré-candidatos a presidência, ameaçando a reeleição de Jair Bolsonaro desde o primeiro momento. Se o futuro ex-mandatário chegou ao segundo turno isso se dá mais pelo uso inédito da máquina pública como ferramenta de governo que pelo seu carisma. Jair e seus comparsas montaram uma operação de guerra em que o futuro do país se consumiu para garantir sua permanência. Pior que ganhar roubando, Jair conseguiu perder roubando. 

A vitória de Lula certamente irá acirrar os ânimos de certa direita, aquela que não ousa dizer seu nome. O placar apertado de 50,86 não traduz o significado maiúsculo desta guerra da civilização contra a barbárie. Quem venceu o projeto miliciano de poder não foram necessariamente as esquerdas, que infelizmente não conseguem fazer frente ao conservadorismo e sequer dispõe da paridade de armas. Não foi nem o antibolsonarismo, que se equipara ao antipetismo sem o mesmo poder de mobilização. Bolsonaro foi derrotado por Lula e pelos pobres. A parte de Lula é óbvia, já que Bolsonaro teria derrotado qualquer outro nome ainda no primeiro turno. Sua capacidade de mentir e praticar qualquer crime para se perpetuar no poder exigiam que seu opositor contasse com a capacidade política que falta aos nossos homens públicos tão acostumados ao entreguismo e fraqueza. Alguns são muito sensatos, mas carecem daquela mística que eleva a alma. Outros são idealistas ou ideológicos demais, não conseguem se comunicar com o povo. 

Por outro lado, foi o povo que escolheu Lula. Não o povo na acepção geral, mas o pobre, o que ascendeu graças as políticas públicas do petismo ou que tem a memória de dias melhores sob Lula. Tem nítida a lembrança do nojo que este governo nutre pelos que vem debaixo. Muitos se lembram do deboche com a pandemia, das declarações contra os pobres, da xenofobia do bolsonarismo contra o Nordeste. Não deu tempo de esquecer do ministro que não queria doméstica visitando a Disney nem filho de porteiro na universidade. Considerando que nossa arma é o que a memória guarda (como diria o grande Fernando Brandt), o caminho natural foi a derrota daquele inominável que jamais deveria ter ocupado uma posição muito aquém de sua moral deformada. O esgoto da história o aguarda.[left-sidebar]


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