Racismo na Vila Sésamo: o preço da credibilidade é a eterna vigilância


Bastou que uma mãe indignada publicasse um vídeo em suas redes sociais para que a reputação do programa Vila Sésamo fosse irremediavelmente arranhada. Não poderia ser diferente, já que as imagens mostram um ator caracterizado como o personagem "Rosita" ignorando de forma solene crianças negras. A prova do maucaratismo fica evidente em outro vídeo publicado por outros pais indignados, onde o mesmo personagem abraça calorosamente uma garota loira após ignorar crianças negras. 


Claro, aquilo jamais foi ordem dos executivos da Vila Sésamo. Ou melhor: nem partiu da empresa, já que os episódios aconteceram em um parque temático operado por uma marca licenciada. Quem está habituado ao cuidado e princípios que a produção educativa tem pelas crianças se espantou com a brutalidade e grosseria contra frequentadores negros do parque na Filadélfia, sobretudo por vir de um local completamente inesperado. 


Sim, a marca Sesame Street tem uma história irretocável até aqui. O conceito foi concebido no final dos anos 60 para preparar crianças para a vida escolar, transmitindo noções básicas de higiene pessoal, cidadania, cuidados com o meio ambiente e até noções de etiqueta social fundamentais para a formação do público alvo. Vila Sésamo também logrou êxito em abordar temas como diversidade e antirracismo de forma equilibrada e compreensível para os pequenos. O programa contou com a consultoria do psiquiatra afroamericano Chester Pierce, além de incluir em seu "currículo escolar" a exaltação da luta pelos direitos civis: durante os protestos pela morte de George Floyd o programa levou ao ar o pai do Elmo explicando o que era racismo e o porquê das manifestações, em outra ocasião a própria personagem Rosita ensinou as crianças a importância do Mês da História Negra e a luta de Martin Luther King Jr. Nada disso livrou o grupo de se envolver nesta treta completamente dispensável.

Um dos problemas aqui é justamente o uso do nome por um projeto paralelo, cuja provável intenção seja mais a exploração comercial da marca que seus propósitos educativos inciais. Não é só um mal-entendido, mas uma falha na consolidação da missão, visão e valores da empresa original nos negócios operados por parceiros. Em algum momento as relações comerciais deixaram de ressaltar a importância destes princípios em seus negócios correlatos, deixando vulnerável a reputação irreparável que a marca cultivou até aqui. A denúncia original despertou uma série de outras similares que provocaram um "apagão" nas redes sociais do programa Sesame Street e do parque Sesame Place Filadélfia, onde se deu o caso de racismo. O parque em questão chegou a publicar uma primeira nota alegando que foi um mal-entendido, que a atriz não viu as crianças e que a empresa repudia o racismo. Logo na sequência veio outra nota, em tom ainda mais constrangido anunciando que a equipe estava reforçando valores positivos para que o episódio não se repetisse. Isto porque a primeira nota foi desmentida pelos vídeos seguintes, provando que ali ninguém estava preparado para esta crise.


Evidente que a empresa não é o mais importante em uma história que envolve crianças constrangidas por demônios que insistem em sobreviver no presente século, mas do ponto de vista corporativo há algo a ser compreendido aqui. Ainda não atingimos um estado de graça onde os cidadãos têm ao certo a medida da decência, mas hoje as vítimas têm voz. Por mais que muitos curtam o racismo, homofobia e machismo no sigilo, é fato que estas práticas são cada vez menos socialmente aceitas - e os que nela incorrem pagam muito caro. Sesame Street (e provavelmente o Sesame Place Filadélfia) vão sobreviver, mas ficarão para sempre maculados. Quem deseja se adequar aos novos parâmetros de cidadania deve incorporar em sua cultura organizacional os valores democráticos contemporâneos, desencorajando de forma muito clara e assertiva que estas práticas não serão aceitas no interior das empresas. Contar com núcleos profissionais dedicados a ética, direitos humanos, diversidade e sustentabilidade é fundamental. É isto ou ter que apagar incêndios de grandes proporções. O preço da credibilidade é a eterna vigilância.[left-sidebar]

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