Nem todo homem, mas sempre um homem





Nem todo homem, mas sempre um homem. Este raciocínio expresso em versos publicados pela artista Tracy Figg viralizou nas redes sociais. Comovida com a descoberta de que um médico anestesista se valia da vulnerabilidade de parturientes para praticar abuso sexual, a moça fez uma reflexão muito particular sobre o que acontece no cotidiano de mulheres. Se por um lado ganhou apoiadores, do outro suscitou a defesa veemente por parte da direita de tacape e dos tantos cérebros baldios que vislumbraram nestas linhas um libelo contra os homens. Não é por aí. 


Quem conseguiu se irritar com aquelas palavras e que supostamente não aprecia a prática do abuso sexual ou assédio deveria no mínimo fazer uma reflexão, um autoexame. Vejamos: se você é contra estas práticas abomináveis, qual o motivo da irritação com a afirmação tão óbvia? 


A alegação dessa turma é de que mulheres também praticam estes crimes, além da menção às vítimas do sexo masculino. Uma afirmação que não se sustenta, já que 85% das vítimas destes crimes são mulheres ou crianças. Segundo cita Verônyca Veras em artigo no canal Ciências Jurídicas, apenas 5% dos crimes sexuais são praticados por mulheres. Não significa que esta minoria não deva ser objeto de repúdio ou análise. O que importa é que há uma forte tendência expressa pelos números que coloca o homem como autor da violência na esmagadora maioria dos casos.


Sou homem, de passado conservador, quase sempre estive a direita. Desnecessário dizer que já parti deste senso comum que mal arranha a superfície. A primeira vez que esta lógica simplista foi provocada foi durante um role na casa de uns amigos, ambiente descontraído em que estávamos todos bebendo e fumando. Entre nós não havia ninguém que pudesse ser considerado “lacrador”. Em dado momento a conversa enveredou para o tema assédio e estupro, e me surpreendi ao constatar que absolutamente todas as amigas presentes passaram por algum constrangimento, assédio ou medo de possível estupro. 


De posse daquela informação compartilhei minha impressão com minhas irmãs e minha mãe alguns dias depois. Elas me relataram a mesma coisa. Mulheres tão diferentes relatavam detalhes semelhantes como um toque não permitido, piadinhas, esbarrões propositais no transporte público, ter que fugir de algum colega de trabalho que a espreita em um corredor da empresa ou ter que apertar o passo ao notar a presença de um desconhecidona rua de noite.


O que me passou é algo como Jogos Mortais, em que a morte está a espreita em toda parte. Quando um caso se torna público ainda existem os anestesistas em busca de atenuantes. Nunca esqueci de uma senhora evangélica que frequentava os cultos da Congregação Cristã no Brasil perto de casa. Sofria algumas enfermidades mentais e se locomovia apenas para a igreja e casa de familiares. Um dia voltando do culto, algum monstro cruzou seu caminho. O corpo foi encontrado dias depois em um terreno descampado. Porque não é a roupa, a ocasião, a provocação, nada. É sempre responsabilidade de quem pratica este crime.


Aliás, quem pratica? Homens. Atuam com a certeza da impunidade, já que a maioria dos casos jamais será notificado. As vítimas normalmente temem esta exposição, não querem enfrentar o julgamento público. Os autores sabem que o Sindicato dos Homens irá defender a categoria de forma tão corporativa quanto às associações de policiais militares defendem os que praticam os crimes mais abomináveis no exercício da função. Ou como os crentes que interditam a crítica a religiosos de índole duvidosa jogando as denúncias na vala comum da intolerância religiosa quando ela não se aplica. Esta defesa veemente da categoria impossibilita o reclame da vítima, já que ela tem que lutar não só com seu agressor – mas com todos os homens. 

 

Talvez fosse o caso de usar este incomodo de forma positiva, instruindo os homens do nosso entorno sobre a necessidade de uma conduta cidadã, que respeite as mulheres e que não sirva de guarida para que os piores de nós ameace a dignidade de nossas companheiras. Para ilustrar meu ponto, recorro a uma obra de René Magritte, “O Assassino Ameaçado" (1927). A mulher jaz no divã enquanto seu assassino ouve música de forma despreocupada. Três homens observam pela janela, apáticos. Outros dois estão ao lado de fora para deter o criminoso. O caso aqui é este: ao invés de se prender em devaneios retóricos muito menores que a denúncia em si, nossa obrigação moral é escolher qual será nossa posição neste cenário.[left-sidebar]


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