O crime de Djonga é ter sangue nas veias


Bastou um vídeo de menos de um minuto para que o rapper Djonga fosse enquadrado pelo Santíssimo Tribunal dos Cidadãos de Bem. Foi retratado como violento pelo jornal O Tempo e outros grandes veículos, se tornou alvo de uma fake news plantada por uma patricinha (a moça o acusou de ter invadido a área vip do Mineirão, mas ele era convidado da CBF) e algumas mensagens criticando o cantor por ser um tipo grosseiro e etc. No fundo todos sabem que isto tem mais a ver com a expressão “Fogo nos racistas” que qualquer outra coisa. 

O incidente que aconteceu com Djonga é típico do Brasil. Não é o racismo bruto, in natura, aquele que brada não gostar de preto e outras obscenidades que constrangem até os próprios racistas. Não, este é o racismo cordial, que dissimula e neutraliza a gravidade de seus termos por meio de uma série de subterfúgios retóricos. Fica difícil para a vítima se defender do que será interpretado como “excesso verbal, maltentendido ou maldade de quem vê”. 

Reparem que outros dois episódios ilustram o que se passou. Um deles foi com a artista plástica Tainá Lima, a Criola. Foi abordada por um segurança enquanto fazia compras na PaperCraft. O sujeito disse que ela não poderia vender produtos dentro da loja e solicitou sua saída imediata. Já Ana Paula Barroso foi barrada em uma loja da Zara por supostamente estar com a máscara mal colocada. Ao invés de pedir que ela ajeitasse o acessório o vendedor pediu que ela saísse. 

Claro, estes episódios não costumam deixar rastros visíveis aos que não são negros. Principalmente porque muitos são insensíveis, mesmo vivendo a vida toda neste fim de mundo ainda são indiferentes ao que diz a maioria negra e parda que faz estes relatos. Se a delegada não contasse com o aparato do Estado a seu favor, o que se seguiria era alguma negativa por parte de alguma amiga na hora do café. “Ah, pode ser só impressão sua”. Não era: havia um sistema sofisticado de discriminação em curso na Zara de Fortaleza, negros eram sumariamente tratados como suspeitos e indesejáveis. 


O racismo sofrido por Djonga provavelmente se enquadra nisso. Pessoas como Djonga não são convidados Vips, não estão nas universidades ou em qualquer posição de mínimo destaque e dignidade no projeto de país formulado pelos senhores. Nem mesmo no seio das polícias militares há segurança, vide o caso do PM negro de Minas acusado de sequestrar a própria filha (que é branca) e agredido por colegas mesmo depois de se identificar como membro da inglória corporação. 


Este processo conta ainda com a segunda violência, que é o vilipêndio moral. O menino João Pedro Mattos era jovem pentecostal e engajado nos estudos e na vida de sua igreja, mas isso não impediu que notícias falsas o associassem ao tráfico (o mesmo que aconteceu com Marielle Franco). Djonga foi acusado de invadir um local para qual ele foi convidado (???), além de ser retratado pela mídia como um homem violento. Se for para dizer que ele não foi vítima de racismo então temos solto nas ruas um sujeito aloprado que gosta de comprar brigas com segurança (o que convenhamos, não seria muito prudente da parte de ninguém).


O caso é simples: além da violência cotidiana ainda há quem queira desgraçar a honra dos nossos. O próprio Atlético Mineiro preferiu condenar a violência e proteger o segurança, supondo que era mais crível um preto agressivo que um segurança racista. O crime de Djonga aqui não foi o soco, mas a reação intrinsecamente humana. Sim, vemos muito aqui no Sudeste os empresários, estudantes, delegados, desembargadores e médicos (e tantos outros) que se engajam em episódios lamentáveis argumentando que “estavam nervosos”. As vezes ainda apelam para a suposta ancestralidade italiana que justifica qualquer grosseria ou agressividade. Quer dizer que eles podem se estressar e o Djonga não? 

Enfim, é isto. Nós (nem me refiro não só aos negros, mas a todos que defendem a dignidade humana) devemos avaliar com frieza este episódio. Porque é fácil condenar o radicalismo aparente, a maioria de nós não romantiza a trocação de socos ou agressões como meio de luta. De minha parte não seria derramada uma gota de sangue para se fazer justiça, mas em casos extremos nossa reação nem sempre será passiva como gostariam pacifistas e cúmplices disso. Não recomendo que se distribua socos para combater o racismo, até porque o preto brasileiro não faria outra coisa que não golpear alvos pelo caminho. Mas é hora de baixar a bola e ficar ao lado de quem sempre foi transparente em sua caminhada. A maior violência aqui foi cometida contra o Djonga, e repercute em cada um de nós. É a violência que lembra que não importa o topo que um de nós alcance, sempre haverá alguém disposto a nos negar a humanidade. Como escreveu Bob Marley:

How long shall they kill our prophets
While we stand aside and look?
Yes, some say it's just a part of it
We've got to fulfill the Book?[left-sidebar]

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