Ninguém deve ser grato só porque recebe um salário


Nunca antes na história deste país uma opinião pedante e grosseira despertou tamanha indignação. Se ao invés de criticar o reality Big Brother Brasil o ator Ícaro Silva houvesse criticado alguma grande denominação religiosa ou algum grupo político é quase certo que teria passado em brancas nuvens. Ao atacar a atração da Rede Globo o ator despertou o kraken adormecido que sai ao debate público a cada vez que um sujeito assim defende algo muito distinto do senso comum. 

Não é possível concordar com a empáfia do autor ou sua crítica raivosa ao programa por vários motivos mencionados por muita gente que reagiu ao tweet. O que não é possível é achar correta a postura de Tiago Leifert em sua resposta. Se Ícaro é conhecido por ser militudo e lacrador, Tiago é notório por tentar esvaziar qualquer manifestação política de modo a deixar tudo insípido e superficial. Há poucos anos ele escreveu um texto indignado contra o que chamou de politização do esporte, e muita gente não esqueceu dos argumentos que eram ao mesmo tempo burros e cínicos. Ele, que nunca enfrentou necessidades matérias ou preconceitos em sua vida, pediu que atletas e torcedores não utilizassem a oportunidade e palco proporcionados pelo esporte para estas reivindicações. Afinal de contas ele só queria curtir um jogo e não se aborrecer com estes assuntos. 

A postura do Tiago deve ser lembrada não pelas duras afirmações feitas ao Ícaro Silva exigindo respeito aos que trabalham de forma digna e honesta nestas produções, mas a dois pontos específicos que falam mais sobre o ex-BBB que sobre o ator pedante. Tiago tenta enquadrar Ícaro afirmando que “é o BBB quem paga teu salário” e que talvez o ator deva procurar outra emissora para trabalhar. 

Bom, Tiago parte do princípio muito sistematizado pelos canalhas da direita de que o empregador é um semideus e o empregado é só um miserável alcançado pela misericórdia do patrão. O empresário é elevado a categoria de santo com uma peculiaridade marcante: se quando Jesus multiplicou os pães e peixes ele não foi o maior beneficiado com seu feito, é o empresário que gera riqueza o maior agraciado pelo próprio dom. Que os empregados se satisfaçam com as migalhas que caem da mesa do senhor. 
Este argumento é obviamente anti-iluminista, um flerte forte com o feudalismo e o instituto da servidão. A impressão é que Ícaro estava mendigando na rua quando algum diretor de elenco se compadeceu de sua condição e lhe deu uma oportunidade na emissora “apenas para ajudar”. Óbvio que o ator só está ainda na Globo por ser considerado um dos grandes talentos de sua geração, do contrário já estaria fora. E pode ser que aconteça, já que o papai de Tiago Leifert foi diretor da emissora durante décadas. 

Tiago é o legítimo filho do chefe, pode ousar, arriscar e até tirar anos sabáticos sem desenvolver nenhuma atividade produtiva. É um sujeito que possui méritos como comunicador, mas que não deixa de ser mais um destes insípidos que não teriam tanta sorte caso nascidos na pobreza. Ser filho de um boss é o que garantiu portas abertas já no último andar da emissora mais relevante do país. É duro dizer, mas Tiago é muito menos arrojado e bem-sucedido do que pensa (como naquele áudio: “SE EU FUI PROMOVIDA NA EMPRESA DO MEU PAI É PORQUE EU ME-RE-CI”).

Inclusive este argumento tem história. Não era incomum ver senhores e ex-senhores de escravos (isso já depois da Abolição) se referirem a criadagem nestes termos. No conto "Negrinha" (curiosamente escrito pelo eugenista Monteiro Lobato) há o relato da “Excelente Dona Inácia”, uma beata de boa família que fazia gato e sapato de uma filha de escravos. O fato da garotinha fazer os piores e mais pesados serviços domésticos era visto como obrigação, já que a boa senhora lhe dava teto e pão. É uma noção arcaica, já que no capitalismo moderno e na democracia liberal não existem os direitos senhoriais e tantas outras excrescências do passado (melhor ainda para Tiago, que na condição de judeu seria proibido de uma série de coisas). Ícaro e qualquer outro trabalhador são pessoas que recebem dividendos em troca de sua força de trabalho, qualquer coisa diferente é lorota. 

Aliás, concordo em partes com este raciocínio. Sejamos sinceros: não se critica seu empregador, não é de bom tom. Nosso irmão Ícaro é um pouquinho lacrador de fato, e errou tanto na forma quanto no conteúdo. O problema foi não enxergar sua condição: ao contrário de Tiago, ele precisou batalhar por tudo que conquistou. Basta se chocar com algum playboy babaca para colocar tudo abaixo. Nisto é bom lembrar do mito de Ícaro. Depois de escapar do Minotauro o imprudente jovem se empolgou com suas asas artificiais, mesmo quando alertado pelo pai fez questão de se aproximar muito do Sol. Seu fim veio quando o calor derreteu a cera de suas asas. Esta morte trágica serviu para lembrar que a realidade sempre se impõe. Ícaro não tem direito de ser babaca, esta prerrogativa é exclusiva de gente branca e superficial como Tiago Leifert.

Encerro ciente de que alguns concluirão estas linhas atribuindo exagero ao auto, o que faz parte do jogo. Então é dever de ofício informar que o apresentador filho do chefe deu unfollow em todos os que curtiram a réplica de Ícaro Silva. Significa.[left-sidebar]
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