Cuidado com os normalizadores do caos

 


Um comentarista de certa concessão pública de rádio finalmente venceu a irrelevância, porém da pior forma possível. J.C.B (melhor não pronunciar certos nomes, do contrário o algoritmo das redes os favorecem) partiu de uma discussão sobre política externa e diplomacia para uma ode ao nazismo. Segundo ele, a Alemanha se tornou a potência que é hoje porque o regime hitlerista matou judeus e tomou seus bens. 

Os mais inocentes dizem que foi um ato falho, alguns indicam que, na verdade o tal jornalista chapa-branca salientou que os nazistas praticaram um crime contra a humanidade. O que de fato aconteceu foi que o tal sujeito normalizou uma narrativa fundamental para a cosmovisão nazi: os judeus ambiciosos acumularam bens à custa da miséria dos alemães, bastou matar seis milhões e tomar seus bens que o país se tornou uma potência. 

Claro: o cidadão que faz do jornalismo a profissão mais antiga do mundo não considera que o país em questão sempre foi uma potência hegemônica, que após a unificação emergiu dali um império – e que este império aderiu ao nazismo justamente pelo saudosismo de tempos melhores. E que após a Segunda Gerra a Alemanha elegeu uma série de governos profundamente democráticos, moderados e compromissados com a construção de uma sociedade melhor que aquela sepultada em 1945. Foi um país que se forjou e se reergueu graças ao trabalho, o que torna papo de vagabundo qualquer tentativa de dar legitimidade a narrativas nazistas.

Importante chamar estes indivíduos pelo nome: são os normalizadores do caos, os anestesistas da consciência coletiva. Lembro que outro desses escreveu que Zumbi tinha escravos, e mais recentemente usou casos de negras foras e livres que adquiriram escravos como argumento contra o racismo estrutural e a necessidade de reparação histórica. Como alguém que já acreditou na primeira mentira, digo que é muito danosa a ação destes indivíduos: basta esvaziar um único evento histórico de seu real significado para moldar a realidade ao gosto do freguês. 

Sim, é um expediente sorrateiro. É quase certo que após a repercussão da fala alguém tenha dito a um interlocutor em conversa privada: “Poxa! Viu a besteira que o J.C.B falou?”. No que o outro responde: “É, mas os judeus também deram motivo. Olha como a Alemanha é rica, meu! Talvez o Adolf não estivesse errado neste ponto, só não deveria ter matado aquelas pessoas”.

A função do normalizador do caos é colocar em dúvida os consensos históricos (inclusive os mais recentes). É o sujeito que diz que a escravidão não foi tão ruim, o que contesta os números da Inquisição, o que tenta reabilitar os Conquistadores espanhóis apontando para a barbárie dos rituais astecas ou quem diz que nossa ditadura militar foi tranquila porque morreram menos de quinhentas pessoas. 

Reparem: por esses dias também se noticia que o presidente interferiu na prova do ENEM. Um dos pedidos foi trocar o termo “Golpe de 64” por “Revolução de 64”. O artifício suaviza a ilegalidade e os crimes do regime, já que revoluções são de fato processos mais ou menos violentos independente de sua legitimidade. O diabo a quem este governo serve é assim, se oculta nos detalhes.

Se toda narrativa ou trincheira de luta se baseia em símbolos e fatos, é de se supor a importância destas construções e as tentativas sorrateiras que pretendem esvaziar seus significados. É por isso que as várias organizações judaicas ao redor do mundo repudiam não só o antissemitismo, mas também certos exageros retóricos que se valem de comparações descabidas com aquele genocídio. Estão mais que certos. Os grandes crimes contra a humanidade também são praticados contra os símbolos e contra a história. Não é por acaso que colonizadores tentaram destruir a cultura de povos africanos, ameríndios e asiáticos, ou que a Turquia moderna ainda reluta em reconhecer o Genocídio Armênio. Permitir a reinterpretação da história é o mesmo que baixar a guarda para carniceiros inimigos da civilidade. Parafraseando a canção de Milton Nascimento e Elis, “nossa arma é o que a memória guarda”.[left-sidebar]

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