As Aventuras de Monark no mundo dos adultos
Este texto começa com um disclaimer importante: sou fã do Flow, ouço o podcast quase semanalmente e considero muito inovador o trabalho desenvolvido por Igor e Monark desde sempre. Dito isto, vamos ao que interessa.
Mais cedo li em O Globo uma entrevista do podcaster, o que indica que aquela polêmica sobre os limites da liberdade de expressão ainda não morreu. Para quem não conhece o Flow (que recomendo apesar das polêmicas), a pauta das liberdades é recorrente. A dupla tem clara influência libertária, além de ter como referência para atração o comentarista, podcaster, lutador (e muitas outras coisas) Joe Rogan. É partindo desta premissa que o grupo (sobretudo Monark) se aventuram na defesa entusiasmada do que chamam de liberdade. O ápice da controvérsia veio com a perda de dois patrocinadores (dentre eles o poderoso Ifood).
Aos fatos: esta interpretação libertária do Estado, dos direitos e da democracia levou a dupla a cair fácil e armadilhas ridículas, como o entendimento de que mesmo as ideias mais abjetas devam ser “admitidas” no debate público. Censura é pior que a ideia censurada, ao menos de acordo com este viés.
O que não foi refletido por eles é que as sociedades não são iguais em seus processos históricos e compreensão de mundo, cada uma se forja sob signos e trajetórias muito distintas. Se nos Estados Unidos há extremistas defendendo o direito de serem escrotos, isso não se dá pela perfeição daquela democracia e sim por razões muito mais complexas (entre elas o fato da república ser moldada por senhores de escravos. Queriam liberdade irrestrita, mas para os brancos, anglo-saxônicos e protestantes). Tanto é verdade que a chamada terra da liberdade possuí legislações sobre armas e vacinas muito frouxas na América profunda, isso ao mesmo tempo em que dificulta a participação de negros e hispânicos no processo eleitoral. Coincidência?
Como este texto não é sobre os libertários americanos e suas contradições, voltemos ao Flow. É de lá que Monark tem rotineiramente atravessado a rua para pisar em casca de banana. Municiado de teses prontas e superficiais para quase qualquer problema, o garoto de trinta anos passou a ser acometido de vários delírios. Um deles é o de que um usuário de maconha especialista em games está apto para portar armas de fogo, que se sairia muito bem em um possível confronto com um criminoso armado. Outro sinal de pouca lucidez é quando ele pergunta no Twitter se “racismo é crime”. Não era necessário, já temos uma constituinte que tornou o racismo crime por meio da Lei Caó (foi em 1989, já faz algum tempo).
Monark não só desconhece os conceitos políticos e teóricos, como compreende muito pouco a respeito de história, política e sociologia. Isso não é crime, mas é a diferença entre quem interpreta a sociedade e um gerador de lero-lero. Como naquela vez em que o distinto gerador de conteúdo se atreveu a diminuir a importância do ensino superior e foi lembrado por uma colega do meio que a opinião não tinha legitimidade, já que o próprio jamais cursou universidade.
Aliás, muitos se apiedaram de Monark. Confesso que cheguei bem próximo disso pela estima que tenho pelos personagens, mas daí me lembrei de algo fundamental: a realidade. Sim, Monark escolheu este caminho. Monark fez pouco das pessoas que dedicam anos de suas vidas ao estudo, reduzindo qualquer análise a mera opinião. Monark teve oportunidades que muitos garotos e jovens adultos da mesma idade jamais sonharam, e a tudo deu de ombros por trazer em si a certeza do jovem branco que tem um mundo inteiro para conquistar. Estes indivíduos não ligam para certas convenções, já que se enxergam como senhores de toda a terra.
Aí complica.
Devo centrar o texto no Monark porque ele é o grande gerador de entretenimento ali. Com todo o respeito ao 3K, mas quem costuma provocar polemicas por cancelamentos recorrentes é o colega. Foi o próprio Monark que se jacta da condição de cancelado de todas as horas, sem ao menos se dar ao trabalho de aprender o que quer que seja com estas experiências. Monark teve em seu programa uma série de convidados incríveis que tentaram ascender um farol para sua consciência, mas a semente caiu entre espinho. A Gabriela Prioli comentou a importância dos dados, mas o cara matou no peito. Pouco depois quis discutir com o historiador Marco Antonio Villa se Lula é uma ameaça as instituições no mesmo naipe que Bolsonaro. Villa é, como se sabe, um dos mais notórios antipetistas e defendeu com veemência que o argumento era uma falsa simetria. Quase saiu faísca. Depois foi o humorista Antonio Tabet, argumentando que a liberdade de expressão deve respeitar a lei e as lutas sociais. Quando Monark disse que não se importava com piadas foi lembrado de seus privilégios naturais, que em uma sociedade de castas pós-moderna como a nossa ainda é a diferença entre ser morto e celebrado. Nosso amigo Monark preferiu fazer como os Bourbon: não aprendeu nada e não esqueceu nada.
Monark só mudou de atitude depois de perder o primeiro patrocínio, mas teve uma recaída na ignorância quando o Ifood fez o que se espera de qualquer empresa que é proteger o próprio capital. A dupla do Flow não digeriu a atitude do Ifood sem perceber a complexidade de tudo: não era só uma empresa atuando de forma, digamos, hipócrita, mas um grupo privado defendendo seus interesses e agindo de acordo com a própria convicção. Isso não deveria ser visto com naturalidade por eles? E sobre os temidos cancelamentos, que nada mais são que a opinião (qualificada ou não) de uma série de anônimo e militantes?
O fato é que caberia ao Flow recuar dois passos para compreender melhor a conjuntura, ao invés de forçarem um argumento que não se sustém em pé. Monark se inebriou dos aplausos de extremistas de direita e alguns adolescentes desajustados para se colocar como o Leão Libertário, o Último dos defensores da liberdade de expressão. Confundiu conceitos com opinião, trending topics com aprovação e seu próprio negócio com a Ágora. Seu gerenciamento de crise foi zero, bem como sua disposição em ouvir mais e falar menos. Sobretudo entender que em um país desigual e violento como o nosso, quem pede o direito de ofender os marginalizados são justamente os que seguram o chicote. Já os muito pobres não estão preocupados com as elucubrações de obscuros youtubers americanos a respeito da liberdade, isso é papo de nerdolas que dormem em camas boas com as barrigas cheias. A preocupação do pobre é com a comida no prato, com a violência do tráfico, com seus filhos que estudam em escolas precarizadas ou com a matança institucionalizada de pretos. Ninguém tem tempo para teorizar tanto sobre o nada.
Agora os dois estão ocupados no exercício do jus esperneandi, mas sem qualquer concessão ao bom senso. Suas posturas (e imposturas) lembram em muito o Kiko, o garoto mimado que via uma vila inteira como seu quintal. O que virá disso é uma incógnita, mas podemos concluir que estes conflitos são apenas uma pequena parte das Aventuras de Monark no mundo dos adultos.[left-sidebar]