Meninas negras também podem sonhar

 


Os dias não são exatamente fáceis, mas os jogos Olímpicos e a complexidade humana presente no evento nos proporcionam momentos de refrigério em meio ao caos cotidiano. A luta, as marcas, a entrega e até algumas derrotas calam fundo em nosso âmago. Momentos que representam muito mais do que os breves minutos de exibição na TV. 

O caso da ginasta Rebeca Andrade é um destes casos singulares. Quem se aventura a esquadrinhar a trajetória da atleta acaba por se perder nos inúmeros aspectos que ela abarca. A própria postura pessoal da moça é altiva, serena e firme. Ninguém pode olhar para Rebeca sem tirar algo proveitoso de sua trajetória. 

De minha parte registro a serenidade diante de um desafio tão importante e o sentimento de gratidão com quem abriu caminho para meninas negras neste esporte e para a família que forneceu os primeiros fundamentos. Mesmo as casas nobres e as linhagens reais se assentam sobre as bases construídas por familiares, e sua vantagem imediata é que por serem os “conquistadores” sua linhagem não será interrompida ou sua família desestruturada nos sucessivos processos históricos.

Este detalhe é importante em um país que negligência seus cidadãos e implode as pontes que proporcionam a mobilidade social. Rebeca faz parte das estatísticas de crianças oriundas de lares chefiados por mulheres, aquilo que o vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão qualificou como “fábricas de desajustados” (Mourão tem sangue indígena, mas a proximidade com a casa grande tornou sua vida muito fácil. Não exijam muito de um incapaz). Nem sempre, meu caro. 

Rebeca é preta, evangélica, de periferia. Saiu de uma situação de extrema vulnerabilidade para o pódio de sua modalidade nas Olimpíadas de Tóquio. Não foi graças ao governo, mas sim a uma teia de ações individuais e coletivas, de conquistas para a cidadania que passam por sua família lutando para manter a dignidade em meio a pobreza e pela trajetória igualmente ilustre de sua colega e antecessora Daiane dos Santos. 

Talvez Rebeca não tenha ainda a exata dimensão do que representa, mas basta a ela saber que é a luz no fim do túnel. Ela descende dos escravizados, aqueles que foram sequestrados e condenados a uma vida que não lhes pertencia. É também o farol para milhões de meninas negras que agora tem a certeza que podem ir além do cárcere social proposto por esta realidade mesquinha. Cada um de nós que consegue driblar as perversas estatísticas acabam arrastando outros tantos pelo exemplo. É este ciclo virtuoso que devemos seguir afim de estabelecermos justiça e honrarmos as memórias de quem nos precede.[left-sidebar]

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