A insensibilidade racial da Farm grita

 


Enquanto a família da jovem Kathlen Romeu se ocupava do choque da perda e cuidava dos trâmites legais, uma série de fake news e elucubrações mentais oriundas das catacumbas da internet interpretava o trágico incidente com o cinismo de sempre (falo disso em um vídeo postado no meu IGTV, segue lá). Até aí, tudo no esperado. O que causou certa estranheza foi a ação publicitária da onde a jovem trabalhava. Nas redes foi disponibilizado o código de vendedora da moça, a ideia era que a porcentagem equivalente à comissão fosse direcionada para a família.

O episódio causou embrulhos porque conheço a tal marca (a saber, a Farm). Conheço muito de perto, já que uma das minhas irmãs trabalhou na empresa. Se o comportamento não causou surpresa, é preciso registrar que o nojo foi alcançado com sucesso.

Façamos uma conta rápida: cada vendedora ganha cerca de 3% de comissão. Apenas em 2020 o lucro da empresa foi de R$ 614,4 milhões. A Farm pertence ao Grupo Soma, que também é proprietário de marcas como a Animale (que faturou R$ 398 milhões no mesmo ano). Mas para a vendedora negra e favelada vítima da implacável violência do estado, o grupo oferece 3% dos lucros obtidos com o código da vendedora falecida.

Um cálculo bastante conservador nos sugere que os sócios continuariam a nadar em dinheiro caso um deles assinasse um cheque de R$ 100 mil para a família da moça. Inclusive causariam menos asco se ignorassem o ocorrido publicamente. Lucrar 97% é questionável quando são as vendedoras, lucrar o mesmo em cima da comoção com uma morte é detestável.

O lamentável do episódio é que o corpo negro sempre será visto como commoditie. Quando viva Kathlen fazia parte da estética da loja, que embora consumida apenas pelos abastados que compram seu brasileirismo gourmet, os negros talvez não possam se aventurar nas lojas sem olhares de estranhamento. Quando mortos, viramos mote para campanhas. Segundo matéria da Exame, parte considerável das empresas que apoiaram a campanha Black Lives Matter são as que menos empregam negros. Com a expansão da voz e da mobilização dos movimentos negros, surge um novo nicho de businnes: o mercado da solidariedade simulada.

Prova de que há solidariedade simulada (ao menos no caso da Farm) foi a notícia ainda mais recente envolvendo a atriz Jessica Ellen. Após uso indevido de imagem da atriz vestindo uma das peças da marca, a empresa tentou um acordo oferecendo ofensivos R$ 1 mil para que a atriz global não prosseguisse com a ação. Como se vê, a atitude racial da organização tem um viés que de tão óbvio grita o que não pode ser verbalizado. Aquele brasileirismo todo é só cosmético, a prática é muito menos suscetível a diversidade, leveza e sofisticação.

Não conheço os envolvidos e menos ainda a índole de diretores e dos integrantes do departamento de marketing, por isso a pergunta: quantos negros foram ouvidos durante as tratativas da infeliz campanha? Qual o motivo de tamanha naturalidade em uma campanha dessas? Será que não tinha algum amigo para avisar? Pensando bem, isto não importa na prática. A família de Kathlen continua ultrajada, sua memória segue injustiçada e a carne do Brasil continua sendo a mais barata deste mercado de morte.[left-sidebar]

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