Morgan Freeman e o canto da Sereia anestesista


O mês de novembro é atribulado para a parcela majoritária da população brasileira que descende daquela gente ultrajada que um dia foram capturados em sua terra e embarcados a ferro para o desconhecido. Ao menos é assim para quem tem dimensão do que estes eventos de horror representam. Não fosse por este pecado original, nossa história seria outra. Neste mês tentamos refletir sobre aquelas circunstâncias, e muitas vezes até brigar pelo direito a memória. 


Nestas ocasiões temos ainda que defender a necessidade de uma data no calendário. Poucos feriados são tão contestados quanto o 20 de novembro. Particularmente penso que seria mais adequado um dia relacionado ao rábula Luís Gama do que ao Zumbi dos Palmares, mas é uma questão pequena: ambos participaram do processo de resistência, devemos muito a cada um deles e fim de papo. Claro, o autor deste texto por algum tempo caiu no conto do vigário revisionista. Lamentável, mas é verdade. 


Nesta data ainda temos que lidar com uma patética discussão. Um trecho de uma entrevista do ator Morgan Freeman é utilizada quase o ano inteiro para esvaziar a reflexão. A tal consciência humana que ele exalta serve de super trunfo contra o esforço de um povo. Uma conta simples atesta: se o processo da escravidão negra começa em 1539 com os primeiros escravizados desembarcando na Capitania de Pernambuco, então os nossos viveram debaixo do chicote por 349 anos. Trezentos e quarenta e nove anos.


Fosse um dia de trabalho forçado, algumas semanas ou meses, já seria um crime. As constituições modernas ao redor do mundo condenam de forma muito veemente a subjugação e o cárcere privado de cidadãos. Por aqui isso só se tornou uma verdade naquele maio de 1888, e fomos o último país a abrir mão da barbárie. Sabem como é, a economia. A tradição. Até a civilidade e a fé cristã já forneceram justificativas para tal. Como eu disse, fosse um único dia já seria traumático. 349 anos é algo terrível o suficiente para ser esvaziado com um vídeo de alguns minutos de uma celebridade em um momento de insensatez. 


A fala de Morgan Freeman sobre a tal consciência humana é um equívoco histórico, civilizacional, psicológico, moral e até espiritual: sim, a fé cristã nos revela que o homem é pecador por natureza. Vivemos em um mundo caído, logo não há muito de bom e nobre na essência humana. Quando Caim assassinou Abel, aquilo era a consciência humana. Quando Nero perseguiu os cristãos, aquilo era a consciência humana, a mesma que executou o Cristo. Como alguém pode esperar que a tal “consciência humana” anule a reflexão sobre o dia da consciência negra?


É preciso explicar: consciência aqui diz respeito ao ter ciência. Em um sentido objetivo diz respeito a ciência daquilo que se é, do que se pratica e das consequências. Depende muito de contextos culturais, sociais, políticos e históricos. Por isso a reflexão sobre a consciência negra se faz necessária: por meio dela os descendentes de escravizados, dos livres e dos livres descendentes de escravizadores podem analisar com a devida profundidade o horror do passado para talvez (talvez) construímos no presente uma sociedade melhor para filhos e netos.


Consciência é o que fazem os judeus ao redor do mundo quando relembram os horrores do Holocausto, o ponto alto em uma história de perseguições sistemáticas que se arrastaram por séculos depois da Diáspora. E olha que na Diáspora deles havia algum nível de liberdade. Os armênios também relembram a matança de que foram vítimas por parte do Império Otomano. Os sul-africanos negros relembram o Apartheid, os afro-americanos relembram a segregação (um contexto muito parecido com o nosso). No Brasil relembramos os crimes da ditadura militar. É a lembrança, portanto, é um dos pilares da resistência. 


A fala de Morgan Freeman deve ser compreendida pelo que é: um momento de insensatez que serve de escudo contra o exercício da memória. Assim como no caso do genocídio armênio e do Holocausto, há quem resista contra a memória. O exemplo da ditadura militar é o mais óbvio pela familiaridade: quem não quer relembrar têm seus motivos: são os criminosos e seus filhotes, ou ainda os que gostariam de reeditar a carnificina no presente.


E sobre o autor da frase? Sinceramente, penso ser difícil condenar a queima-roupa. O mais provável aqui é o fator geracional, aquele que levou uma personalidade como Glória Maria a diminuir algumas bandeiras do presente dizendo que “o mundo ficou chato”. Se Morgan Freeman não for um capitão do mato como o presidente da Fundação Palmares, então a explicação é simples: quem viveu o racismo de cinquenta ou sessenta anos atrás não desenvolveu uma noção tão complexa de cidadania como seus filhos e netos. O mundo era mais hostil. Quem viveu a segregação não aprendeu a problematizar a falta de representatividade na publicidade ou o preconceito com cabelos crespos usados ao natural. Nós podemos (e devemos) reclamar porque podemos enxergar mais longe. Mas só temos esta condição porque somos os tais anões nos ombros de gigantes. Sim: ressuscitem os irmãos Rebouças, José do Patrocínio ou o próprio Luís Gama. Talvez dissessem que quase não temos problemas. Talvez.


O caso é que hoje podemos contemplar o passado, nos questionamos sempre como nossos pais e avós se sujeitavam a certas arbitrariedades em um país em que os negros supostamente eram livres. Mas vejam só: a Lei Caó (que tipifica o racismo) só foi aprovada em 1989. Em casa sempre ouço causos como o da minha mãe, que em algum momento da juventude (82/83) exigiu respeito de um cliente que a chamou de “negrinha”. O gerente a demitiu, já que “o cliente tem sempre razão”. Meu pai é um pouco mais velho, passou pelo Exército em pleno governo Geisel. Até tempos atrás ele insistia que muito do que reclamávamos em casa não era exatamente racismo. Demorou para entender, mesmo contando em tom de revolta de como se exigia “boa aparência” em determinados empregos (traduzindo: que o candidato fosse branco). Temos que compreender nosso lugar na história, nosso compromisso inalienável que é honrar a memória de quem sofreu antes de nós e deixar para nossos filhos e netos um mundo melhor do que encontramos. E isto será possível apenas se tivermos ciência do mundo que nos cerca. Se ouvirmos o canto da sereia anestesista, ficaremos perdidos pelo caminho.[left-sidebar]



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