Há algo de errado com o Carrefour Brasil, até seus dirigentes internacionais admitem

Apesar das tentativas de passada de pano e "branqueamento de reputações", o horror no assassinato praticado por seguranças do Carrefour em Porto Alegre é inegável. Jornais do mundo todo reportaram o fato (entre eles Washington Post, The Guardian, New York Times e Reuters). É aí que entrou em cena Alexandre Bompard, que se manifestou no Twitter contra as cenas. A partir daí o dirigente da empresa no Brasil Noel Prioux gravou um vídeo veiculado em horário nobre, onde pede desculpas pelo ocorrido. Enfim, a crise chegou no dirigente global da companhia.


Reparem que o Carrefour não se limitou a reconhecer a gravidade do crime, como aproveitou a ocasião para anunciar medidas antirracistas que serão tomadas no âmbito da organização. Nada de justificativas, mas ação compensatória. A liderança global da companhia resolveu estancar a sangria ordenando que a parte brasileira se mexesse. Veja: até então o Carrefour Brasil se limitou a publicar uma nota de repúdio. Provavelmente aqueles argumentos negacionistas dos direitistias convertidos em advogados voluntários da rede não foram considerados. Ao contrário de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, a rede admitiu o racismo. 


Como aventei em um vídeo tratando do caso, é evidente que há algo errado com a cultura corporativa do Carrefour. Dentre as polêmicas recentes  houve um cão morto a pauladas, um cliente negro espancado por abrir uma latinha de cerveja (que ele pretendia pagar) e uma funcionária demitida após denunciar assédio moral e racismo. Ainda em 2020 um colaborador sofreu um avc e morreu no local. A presença de um cadáver não comoveu os dirigentes da unidade do Recife, que simplesmente ordenaram que o corpo fosse coberto por guarda-sóis para não atrapalhar as vendas.


Nos dias atuais não se tolera algo assim em boa parte do mundo. Não se toleram mais conglomerados com uma cultura corporativa próxima da política colonial do Congo Belga. Não é mais caso de necessidade: o que o momento impõe ao Carrefour é uma revolução na rede brasileira. A organização terá que desmantelar suas lógicas internas e humanizar as diretrizes para tentar alcançar o espírito do presente século antes que a crise se desdobre em retaliações globais. 


Sim, o exemplo do Congo Belga parece extremo - mas guarda algumas proporções. Aquela imensa porção de terra não pertencia formalmente ao país europeu, era mais uma propriedade privada do Rei Leopoldo II. O monarca investiu dinheiro próprio na exploração da terra conhecida como "Estado Livre do Congo". Ali praticaram atrocidades que escandalizaram o mundo, até que um jornalista abelhudo revelou as políticas corporativas genocidas do monarca. Mesmo para os padrões do neocolonialismo aquilo soou extremo. Um escândalo de proporções tão grandes que membros da família real belga foram preteridos em suas propostas de casamento com membros da família real britânica e outras casas nobres. Ninguém queria proximidade com quem tinha as mãos (tão) manchadas de sangue. Recentemente o movimento Black Lives Matter inspirou não só a derrubada da estátua de Edward Colston em Liverpool, mas também ataques contra os monumentos que homenageiam o rei genocida na Bélgica. Tenham certeza: o Carrefour não está na mesma posição que um monarca, estas reações no continente europeu seria devastadora.


O que fica de questão é: qual era o paradigma do Carrefour no Brasil? A organização tinha como missão além do lucro exercer um papel positivo em nossa sociedade ou se deixou contaminar pela cultura colonial que nos mantém presos nos escombros da casa grande? Dias atrás uma figura importante do Nubank se deixou trair em uma entrevista no Roda Viva, algo que deveria ser seu momento de glória transformou-se em um desafio para a própria biografia. Ao que parece houve um reposicionamento (ainda que só tenha vindo após as negativas tão próprias dos brasileiros brancos e ricos embriagados por seus privilégios). O Carrefour não se construiu sob os mesmos signos progressistas do Nubank, mas certamente não quer ser visto como um puxadinho varejista do rei Leopoldo II.[left-sidebar]



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