Cancelamentos incendiários
Recorro a esta comparação e aos exageros de linguagem para colocar a questão que tomou o “Black Twitter” por estes dias. O comitê independente formado para discutir o papel do Carrefour e suas diretrizes no Brasil provocou a ira de muitos. Não sou dos que se comovem com prateleiras em chamas, o processo histórico tem dessas coisas a despeito de acharmos que a tática é desejável ou não. Mas olhem só, a coisa fica embaçada mesmo quando atingimos uns aos outros.
Sim, Sílvio Almeida se tornou alvo. Antes dele foi Djamila, por pouco classificada como uma “neoliberal” por uma campanha para o iFood. Detalhe importante é que a participação de Silvio ainda era mais objetiva que a de Djamila: o comitê INDEPENDENTE não é uma assessoria de compliance, setor de recursos humanos ou simplesmente um corpo de influencers escalados para lavar a reputação da rede. É um grupo de intelectuais que tentarão de alguma forma apontar as contradições daquela organização.
É óbvio que isto é uma medida para salvar um agente do capitalismo de suas próprias contradições, e não me surpreenderia saber que a preocupação mais urgente dos executivos da rede fosse com a saúde da própria empresa antes da cidadania. Ah, a cidadania, este conceito que só foi ampliado para classes não-brancas no último século e meio em ritmo slow motion... A história não caminha como queremos, mas como lutamos.
No entanto, cabe ressaltar que sob a copa desta imensa árvore que alguns militantes desejam decepar há muitos que vivem no ecossistema que ela proporciona. Desde trabalhadores diretos aos indiretos, aqueles que se relacionam como consumidores e prestadores de serviço e etc. Em verdade vos digo: mesmo que esta empresa fosse banida do Brasil o racismo permaneceria intocado. Talvez esta visão colonial da rede seja exatamente um traço da matriz brasileira. Sim, somos um país racista. Qualquer coisa que se insira neste contexto irá lidar com esta realidade. Para não esquecer: o banimento do mercado não está no horizonte, principalmente em um governo Bolsonaro-Mourão, que acusam o ativismo antirracista de “divisionista” (não se intimidem, eles passarão).
A real é que as contribuições do comitê não se resumem ao Carrefour, elas atingem ainda seus fornecedores, prestadores de serviço, a maioria de colaboradores pretos e pardos, clientes e até concorrentes. Este trágico incidente (que se repete diariamente com outros nomes e sem os mesmos desdobramentos) aqui tem uma saída que não é feliz, mas necessária: transformar o nome de Beto em referência de resistência e correção de rota. A partir das colaborações do comitê a sociedade terá uma sinalização clara do que é ou não tolerável. O cabresto da civilidade que se impõe sobre o Carrefour é um marco.
Sobre os integrantes do comitê, a tarefa é inglória. Não acreditem que um cidadão tão influenciado pelo marxismo como Silvio Almeida fica feliz sabendo que o sistema está apenas cedendo alguns anéis para se preservar. Mas nossa dinâmica enquanto democracia liberal é esta. A realidade é esta. O que não é desejável é jogar toda a obra e vida de uma das nossas maiores personalidades na lata de lixo da história.
Silvio Almeida lidou bem com a situação, se explicou para quem está disposto a ouvir e passou ao largo do fel dos alpinistas. Ele sabe que ninguém atira em árvores que não dão frutos. Não são poucos que pretendem ocupar o espaço deixado por esta árvore frondosa caso ela caia. Outros ainda não entenderam como transformar o luto em luta. Não é fácil, sabemos. Mas é aí, seremos o Killmonger? O cara queria tanto a vingança que por pouco destruiu seu lar ancestral. Os ritos observados por seus antepassados, a sacralidade da hierarquia e daquele modo de vida foram vilipendiados por um sujeito que adotou a ira como seu norte, mas que talvez quisesse também se colocar no centro do processo.
Encerro esta reflexão com uma thread magistral do Preto Zezé, tão direta que deixei para o final para que você ao menos lesse o texto sem achar tudo isto desnecessário haha. Sim, o autor tem suas discordâncias pontuais com todos estes citados: Mano Brown, Djamila Ribeiro, Silvio Almeida e Emicída... Talvez até com o Preto Zezé. Mas agora aos trinta algumas coisas ficam evidentes: muitos deram o sangue para que nossas gerações fossem presenteadas com estes heróis, e eles por sua vez já nos deram um mundo menos hostil. Se você está disposto a sacrificar os seus, algo de errado não está certo.