O veneno do antissemitismo não fortalece em nada a causa negra
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o rapper Wiley |
Uma série de comentários feitos pelo rapper britânico Wiley tiveram como resposta a suspensão das contas do artista no Twitter e Instagram, além de um processo no gabinete do primeiro-ministro que analisa a possibilidade de anulação de seu título de MBE (Membro da Ordem do Império Britânico). Entre outras coisas o rapper acusou "advogados judeus" de serem os mentores do racismo sistêmico na indústria da música.
Negros e judeus possuem uma relação muito peculiar nos Estados Unidos, onde as dinâmicas do processo histórico levaram levas de trabalhadores pobres do Sul a migrarem para o norte industrial, onde dividiram bairros com imigrantes judeus do Leste europeu. A integração impôs uma convivência pacífica e exitosa do ponto de vista cultural e político. Judeus apoiaram negros nas campanhas pelos direitos civis, judeus e negros fizeram história na indústria do entretenimento e marcara para sempre a identidade de localidades como Brooklyn, Bronx e Harlem.
Por óbvio há exceções. Que o diga a histriônica Nação do Islã, do grupo fundado por Wallace Fard Muhammad e hoje liderado pelo falastrão Louis Farrakhan. Outros muitos colaboraram com as hostilidades, seja amparados em fatos históricos, conflitos sociais ou mesmo em pseudociência como a alegação de que os judeus foram mentores intelectuais da escravidão. A organização que leva por nome o slogan Black Lives Matter também embarcou nesta canoa furada, isso ao mesmo tempo em que a imprensa norte-americana reportava o aumento de ataques a judeus em bairros majoritariamente negros nos Estados Unidos. A animosidade ganha ares de conspiração e antissemitismo justamente quando os agentes do debate antirracista mencionam os judeus como senhores do poder econômico e por isso mesmo partícipes da exploração. Em episódios como este do rapper Willey, argumenta-se que mexer com judeus é retaliação certa como prova de uma suposta engrenagem espúria.
Nada mais falso. Os judeus de uma maneira geral sabem o que é ser minoria oprimida muito antes do tráfico negreiro se tornar opção de europeus gananciosos que pretendiam lucrar no continente americano sem dispensar aos trabalhadores o mínimo de dignidade. Se eles conseguiram se organizar de forma mais exitosa que os negros a resposta está nas peculiaridades dos processos: judeus mesmo oprimidos tinham noção de sua identidade, que de uma maneira geral não foi apagada a força. Mesmo cidadãos de segunda classe durante o período medieval ainda eram interpretados por suas sociedades como dignos de determinados direitos. Os negros não eram considerados pessoas, portanto eram apenas bens móveis de seus senhores. Sua identidade foi anulada, o que aumentou em muito a possibilidade de organização se compararmos com os judeus.
Vem daí a compreensão que classifica quilombos e terreiros no Brasil e das igrejas negras nos Estados Unidos como "espaços de resistência". Se sobreviveram em suas identidades isso se deu apesar do esforço dos grupos dominantes para anular suas identidades. Os judeus até foram submetidos a conversões forçadas em Portugal e Espanha, mas a liberdade permitiu que muitos escapassem das perseguições. O negro era cativo, proveniente de outra cultura não tinha a possibilidade de enfrentar as adversidades da mesma forma.
Punido por duas das principais redes sociais, o rapper britânico Wiley recebeu apoio de radicais do movimento negro e antissemitas da extrema-direita que o acolheram com o sombrio argumento: "Pois é, sempre dissemos que eles controlam o mundo". Quando se fornece um halibi para canalhas. Os ataques antissemitas praticados por negros alimentaram campanhas em veículos como Breitbart e Infowars, que salientavam a ameaça do Black Lives Matter como braço radical da esquerda, antissemita, anticapitalista e anticristão. Até hoje estes espantalhos são utilizados (inclusive no Brasil) para invalidar manifestações necessárias que utilizam este slogan. Foi este mesmo antissemitismo identitário que fortaleceu a tese da "defesa dos valores do Ocidente judaico-cristão".
Sobre os judeus, eles não controlam o capital - apenas reivindicaram seu lugar ao sol ao longo da história e hoje possuem mais meios de defesa do que há tempos atrás. É o que a negritude deve fazer, cuidar dos seus sem se deixar seduzir por revanchismos e ódios ao longo do caminho. O veneno do antissemitismo não fortalece em nada a causa negra, ao contrário, o exemplo dos judeus e sua luta por sobrevivência são notáveis. O melhor que fazemos é reconhecer o nosso papel enquanto membros de uma diáspora nos inspirando naqueles que resistem desde a destruição do Reino de Judá.[left-sidebar]