Barra Torres: as FFAA na Estrada de Damasco?
Há coisa de alguns dias o país se debruçou sobre os desdobramentos da contundente nota publicada pela Anvisa em que seu diretor-presidente Antonio Barra Torres rechaçava as insinuações feitas pelo presidente da República Jair Bolsonaro a respeito de supostos interesses escusos da agência com relação a imunização de crianças contra o covid-19. Foram linhas duras, altivas e elegantes que certamente esmagaram o presidente, que na condição de invertebrado moral não viu outra saída que não o vitimismo de sempre (“a carta foi agressiva” e etc). Mas fica o questionamento: estamos vendo tudo?
Em primeiro lugar se destaca a carta em si, marcada pela pessoalidade e pelo personalismo em torno do diretor-presidente e do chefe do Executivo federal. O papel da agência, seus servidores ou o amparo legal e científico que respaldam suas decisões não são mencionados. É um embate entre Bolsonaro e Barra Torres.
Nota-se de longe que o objetivo foi cutucar com “ferrinho de dentista” (como diria o não-saudoso Collor de Melo) os pontos sensíveis de Jair. Ali Barra Torres desnuda a hipocrisia militante do presidente mencionando a corrupção, as mentiras, a péssima carreira militar do presidente e a instrumentalização da fé cristã como pilares do bolsonarismo. Um texto tão cortante quanto lâmina certamente merece aplausos, mas estes não podem eclipsar os fatos.
Vamos a eles: o agora diretor-presidente e carrasco de Bolsonaro foi nomeado pelo próprio presidente. Médico de formação e com experiência no meio militar, Barra Torres certamente se ajustou a Anvisa e sua missão, mas não sem antes pagar os tributos no altar do bolsonarismo. Nomeado por conta da patente (Barra Torres é apenas contra almirante da Marinha), o militar se tornou alvo do rosnar presidencial apenas recentemente. Até pouco tempo atrás ele participava de manifestações golpistas ao lado de Jair, em outra ocasião tentou até embaraçar a aquisição das doses de Coronavac pelo governo de São Paulo (aquela vendetta entre o presidente miliciano e o governador João Doria).
É compreensível a ira de Jair, foi traído.
É isto ou estamos diante de uma milagrosa conversão.
Teria Antonio Barra Torres passado pela estrada de Damasco? Será que ao perceber que Jair é criminoso, genocida e golpista lhe ocorreu que ele estava cego, mas agora vê? O resto dos milicos teriam sido contemplados por esta miraculosa metanoia?
Provavelmente não. Barra Torres, ao que parece, se move por seus interesses pessoais. Sabe como poucos que está lidando com um sociopata, e que este celerado usou do poder e influência para marcar um alvo em suas costas. Mais importante que o contra-almirante é o próprio partido militar, que hoje ocupa mais de seis mil cargos na administração federal.
Todos sabem que esta situação é insustentável. Os militares se associaram a Bolsonaro apenas na campanha de 2018, muitos motivados pelos fantasmas de protozoários como Silvio Frota, Newton Cruz e outros escroques. O espírito destes inditosos é cultuado na caserna e serviu de inspiração para o embarque na gangue bolsonarista. Ocorre que agora o hospedeiro está moribundo, e os parasitas terão de se arranjar fora dali. Sim, a derrota de Bolsonaro é certa. O que o partido militar teme mais que o fim de sua gorda previdência ou a democracia é a hipótese de deixarem seus cargos ou acertarem seus débitos com a sociedade (eles virão).
A movimentação de Barra Torres é só um dos muitos indicativos de que os milicos preparam um desembarque ou uma desassociação inicialmente discreta. Se somado a decisão tardia do comandante do Exército general Paulo Sérgio que obriga militares a tomarem a vacina para retornarem ao serviço (que também gerou críticas por parte do presidente) é fácil perceber o padrão. O débil Paulo Sérgio foi o mesmo que apoiou a nota golpista das três forças contra o senador Omar Aziz, além de permitir que o general Pazuello saísse impune depois de discursar no palanque do presidente em uma motociata. As Forças Armadas, tão conhecidas pela completa nulidade moral agora pretendem empreender um desembarque lento, gradual e seguro (bem ao gosto de Geisel e Figueiredo). A missão é se dessaciar de forma discretadando a entender depois que, apesar de jogarem com esta camisa até os 40 do segundo tempo jamais houve convergência com o reinado de trevas de Jair Bolsonaro. A rejeição ao genocida já atinge as instituições militares, o envolvimento com crimes durante a pandemia arrastou os fardados para a lama. Como Jair está claudicante, melhor sair enquanto é tempo.[left-sidebar]