O menino Charlinho, um Herói nacional

Ontem o Fantástico exibiu mais uma das histórias de “luta e superação” a respeito de um cidadão brasileiro privado dos direitos mais básicos. O garoto Arthur Mesquita é obrigado a subir em uma árvore para acompanhar as aulas online. Aos 15 anos, Arthur é mais uma das vítimas indiretas da pandemia que forçou a modalidade de ensino à distância em um país precário de políticas públicas e de infraestrutura. O sinal é fraco na cidade de Alencar (interior do Pará), mas ainda assim ele não desiste. É aluno aplicado, faz o que está a seu alcance para não perder nenhum conteúdo. 


Entenda, Arthur não é o objeto de críticas aqui. Quem está na berlinda é o jornalismo que fatura transformando a miséria em safári. O drama de Arthur é compartilhado com os lares da classe média e dos remediados, que irão comentar sobre o esforço do garoto contra todas as circunstâncias. É a contribuição para a lógica da meritocracia que isenta o estado (e por extensão a sociedade) de qualquer responsabilidade a respeito do destino de milhões de brasileiros esmagados por nossa maldade. 


“Quem quer consegue”, dizemos. “Qual é sua desculpa para superar os desafios da vida?”, repetem os coachs. “Ele não quis ser uma vítima da sociedade, rejeitou a criminalidade e está correndo atrás” dizem os conservadores carniceiros. “Enquanto os lacradores culpam o Estado, o indivíduo persegue seus objetivos” dizem os indigentes morais das adjacências do liberalismo do Alabama. Os jornalistas responsáveis pela peça cumpriram seu papel. Podem desfrutar do lucro com o drama de Arthur em seus condomínios nos grandes centros cosmopolitas.


Creio que ninguém sintetizou melhor este fenômeno que o Hermes e Renato, o genial programa da MTV tocado por Fausto Fanti, Bruno Sutter, Felipe Fagundes Torres, Adriano Pereira, Marco Antônio Alves. Na esquete do “Jornal Jornal” a dupla Marcia J e Wallace apresentaram a vida sofrida de Charlinho Menezes, um garoto “do extremo norte do Brasil”. Todos os dias ele anda 1200 km descalço em uma estrada cheia de cacos de vidro e pedras pontiagudas, além de atravessar um rio cheio de piranhas. É a pura romantização da pobreza. 


Ouvimos histórias e “estórias” de Charlinhos todos os dias, até nossos empresários gostam de maquiar suas biografias para dizer que construíram suas fortunas do nada. Porque todos sabem que é constrangedor mandar a real, dizer que é privilegiado em um país de miseráveis. O menino Charlinho se torna assim um ícone a ser celebrado, que mantém os cínicos soltos e o gado nos currais. 


É muito confortável manter este sistema de coisas. É um mito que sedimenta as baixas expectativas dos mais pobres a respeito de suas vidas. Os ricos podem se livrar da culpa cristã dizendo que a vida é assim mesmo. O país que se fez em torno da exploração, da escravidão, do estupro e marginalização de indivíduos segue em frente sem arcar com a responsabilidade. O mito do menino Charlinho estabelece um fosso entre as elites e o resto, poucos irão driblar o rio repleto de piranhas para se juntar aos iluminados no andar de cima.


Que cidadão brasileiro nunca ouviu um causo de algum charlinho por aí? De alguém que não precisou de cotas, que dispensou políticas públicas, que não é do mimimi. Quando a discussão descamba para a responsabilidade coletiva é comum sacar esta carta da manga, seja por ricos interessados na conveniência do continuísmo ou por pobres aculturados na indignidade. Puro engodo. Até porque os mais abastados de nós adoram endossar estas fábulas, mas nunca vemos ninguém doando suas riquezas antes de morrer ou matriculando filhos em escolas públicas da periferia para que eles construam seu próprio caminho. Porque a meritocracia e a luta do menino Charlinho são tão boas que servem apenas para os mais vulneráveis.[left-sidebar]

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