Cancelamentos seletivos
Não faz muito tempo que a historiadora Lilia Schwarcz foi "cancelada", termo que a novilíngua tupiniquim emprestou da cultura urbana americana para designar aquele indivíduo alvo de uma campanha de justiçamento em virtude de algum comportamento ou intenção atribuída a ele. No caso da historiadora a campanha veio por conta de uma crítica mal-humorada a um álbum visual da cantora Beyoncé. A acadêmica não entendeu uma ou outra referência e criticou a obra em sua coluna na Folha, atraindo sobre si a ira de meio mundo.
O que não passou desapercebido neste debate foi a participação de algumas influenciadoras, cantoras, atrizes e jornalistas que desconsideraram praticamente toda a obra de Lili Scharwz para enquadrá-la no papel de vil escarnecedora da Beyoncé. Prestem atenção neste ponto que é importante: a crítica expressa pela historiadora não tinha razão de ser (creio que ela não conhecia o conceito do afro futurismo, mas isto não é pecado contra a lei de Deus), mas não era motivo para a campanha jacobina. Provavelmente havia alguma intenção oculta na sanha. Isso ficou ainda mais claro quando semanas depois um cabeleireiro de celebridades chamou duas modelos que o assistiam em um workshop sobre cabelos crespos por conceitos chulos. Para o profissional a negra de pele mais clara era (palavras dele) produto do patrão que comeu uma escrava, por isso tinha um padrão que poderia ser encontrado na Europa.
A língua do sujeito foi ladeira abaixo, bem como a moral de algumas figuras que pautam o debate. Se com a historiadora faltaram exigir a remoção das cordas vocais e amputação dos dedos para que jamais voltasse a escrever ou falar o que quer que fosse, com o cabeleireiro tudo se resumiu a pedidos para que ele refletisse e pensasse nos termos rudes que empregou. Nada de cancelamento, longe disso. Porque ele é, pelo que soube, amigo da galera. Inclusive o sujeito apelou para o argumento de ser "bixa preta" (mais claro que alguns cancelados por aí), sem admitir a gravidade do que disse e recebendo o terno abraço dos que apedrejaram Lilia. Cristo diria que são todos fariseus.
Evidente que isto é desmoralizador. Principalmente porque as canceladoras sabem o que foi dito, são negras que colocaram a ideia de civilidade abaixo da conveniência. Por outro lado nos revela que talvez a tentativa de fazer Lili Schwarcz tomar cicuta nos stories como ato expiatório fosse apenas inveja. É inegável que a historiadora frequenta espaços elitizados e com naturalidade percorre espaços que muitas destas influenciadoras não conseguem acessar. Por vários motivos: algumas são muito jovens, frutos da geração Twitter que anseiam por acontecer antes do devido amadurecimento. Lili escreveu muitos livros, formulou pensamentos e fez por merecer o espaço que ocupa. Ela não é errada, errado é o sistema que prende outras tantas Lilis em potencial no trabalho doméstico e funções subalternas. Apedrejar esta senhora não abrirá espaço a ninguém, apenas deixará uma lacuna.
Ressalto inclusive que nem sempre posso concordar com a historiadora ou com seus canceladores, ao passo que por vezes o que dizem me faz muito sentido. Mas para que estas compreensões possam se estabelecer é preciso que haja honestidade no debate público. Sem revanchismos, panelinhas ou radicalismos venais. Porque hora ou outra o cancelado é alguém da patota, e aqui não impera a lógica do Período do Terror em que até os mais fervorosos revolucionários são deitados na guilhotina. Quando a praça ruge e o povo aponta para um camarada de fé, o normal é que os carrascos se entreolhem de maneira terna. Suspende-se o grito, recolhe a lâmina. Se descobre a humanidade, a moderação conservadora. Danton se torna Burke e se atinge o bom senso sem a necessidade de ler Universo em Desencanto. Quem discorda da histeria, se ressente com a luta ou mesmo sente saudades secretas do Antigo Regime apenas murmura: "A Bastilha tá diferente".[left-sidebar]