O Ebenezer Scrooge de sapatênis

 

Poucas coisas são mais degradantes que ser um Ebenezer Scrooge de sapatênis (ou mocassim)

Um conhecido deu RT em um post que era a um só tempo cômico e trágico, um anúncio de vaga com condições tão desumanas que parecia fanfic. A página responsável por coletar estas pérolas carrega o sugestivo nome de “Vagas Arrombadas”. Alguns minutos ali e somos confrontados de forma escatológica com a naturalidade e desenvoltura com que se interpreta a relação entre empregados e empregadores e as lógicas sociais no país. Lembrei da polêmica daquele jovem empresário que neste longuíssimo ano de 2020 consegui atrair o opróbrio público ao relatar uma conversa com uma candidata a uma vaga anunciada por ele. Uma candidata a uma vaga na empresa do rapaz não gostou da ideia de ser entrevistada no final de semana, já que segundo ela seriam dias dedicados a seu filho pequeno. Nosso jovem farialimer respondeu com ar blasé que “os dias úteis eram para trabalho e os finais de semana para entrevistas”, o que supostamente maximizava o rendimento da empresa. Ainda deu lição de moral afirmando que esta “impostura” da candidata só provava que ela não servia para sua empresa. Quando o cancelamento veio, daí não restou outra alternativa que não a retratação pública. Esperamos (mesmo) que ele tenha aprendido algo com o episódio. 

Desde o caso deste rapaz que uma ideia fixa (e talvez pouco original) me ocorre: a de que lidamos com um fenômeno de continuidade das eras coloniais e do feudalismo. Sim, aquele espírito que calculava o lucro acima da sociedade e dos indivíduos desde que os lucros de uns poucos se materializassem. O custo humano não importa desde que faça um único indivíduo sorrir. Enfim, esta divagação toda me leva ao Natal. Nesta época do Ano o clichê nos proporciona reprises de Esqueceram de Mim e do Cântico de Natal, inspirado no clássico de Charles Dickens. Não por acaso, Ebenezer Scrooge é um personagem típico da Revolução Industrial: um rico e avarento burguês que optou pela insensibilidade como modo de vida. Aqui o princípio da servidão e escravidão se dá em escala micro: o sofrimento da massa garante o sucesso de tipos como Scrooge.


A reflexão é necessária para o bem do próprio capitalismo, que se torna insustentável no longo prazo quando a riqueza por ele produzida é escassa e enche as bolsas de alguns poucos afortunados. O modelo que inspira o jovem que só entrevista candidatos nos finais de semana é o mesmo do pessoal do telemarketing que regula com mãos de ferro as idas de seus colaboradores ao banheiro. Parece tudo certo se a sua inspiração for o engenho. Os capitalistas mais sofisticados perceberam que a humanização do trabalho traz ganhos muito mais expressivos que a política neo-escravagista que ainda faz a cabeça de alguns na Faria Lima e adjacências. 


Tomemos aqui o exemplo da Faber-Castell. A multinacional do lápis é uma das mais longevas empresas do mundo, em atividade desde que o alemão Kaspar Faber lançou a pedra inicial ainda em 1791. Sua trajetória vencedora se baseia sobretudo na busca eterna pela qualidade de seus produtos e na inovação constante, o que rendeu fortuna ao clã e transformou o que era um pequeno negócio em uma multinacional. Reparem: a mesma projeção que garantiu aos von Faber-Castell um lugar na nobreza, um castelo e uma invejável biografia inspirou também a inovação no setor de recursos humanos e responsabilidade social. Bisneto do fundador, o barão Lothar von Faber (1817 – 1896) radicalizou o conceito medieval do “honorável mercador”: construiu casas para os trabalhadores, escolas e jardins de infância para seus filhos, seguros de saúde para colaboradores, dependentes e a sensação de pertencimento ao negócio. De forma muito simbólica se tornou referência na concessão de direitos trabalhistas, casando a geração de riqueza com bem-estar social, o que lhe garantiu um lugar no parlamento da Baviera e o título de barão. Também garantiu que sua organização familiar se livrasse das agitações sindicais próprias da Revolução Industrial, quando o único direito do trabalhador era ficar calado. Ainda hoje a empresa investe milhões em educação, inovação tecnológica e produção sustentável, atua fortemente na preservação de florestas e no bem-estar de seus colaboradores espalhados ao redor do mundo. De certa forma a família von Faber-Castell internalizou princípios virtuosos próprios da social-democracia e da democracia cristã (a gêmea boa do tal conservadorismo-liberal)


Percebam que nenhum Faber-Castell precisou receber a visita indesejada dos espíritos de Natal ou um cancelamento nas redes para que se desse a metanoia. Bastou encarar o colaborador como ser humano que obviamente é. O case da Faber-Castell vai à contramão de quem enxerga o ser humano como commoditie que pode ser espremido como laranja, e cujo bagaço pode ser descartado quando não houver serventia. Por aqui temos deste o clássico Tiozão Scrooge exaltando a meritocracia até o descolado Scrooge de sapatênis que explora jovens universitários dizendo que o Elon Musk se tornou bilionário porque rejeitou a conformidade dos que exigem para si direitos trabalhistas. Experimentem transformar em verdade aqueles desejos que repetimos por ocasião do Natal aos nossos familiares e amigos. Por acaso a mensagem do aniversariante do dia é justamente o servir, conceito que uma vez implementado no ambiente de trabalho transforma empresas em comunidades e o eleva a geração de riqueza a patamares muito maiores do que a pobreza da casa grande ousou imaginar. Pensem nisso.[left-sidebar]

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