O guarda-sol no trabalhador morto não é um caso isolado


O pastor Yago Martins foi muito perspicaz ao estabelecer uma analogia entre a notícia do trabalhador morto no Carrefour e o operário da "Construção" de Chico Buarque. O último por pouco atrapalha o dia de trabalho da loja, o segundo caiu na rua atrapalhando o trânsito.

A letra de Construção é de 1971, uma crítica espirituosa ao caráter desumano da sociedade. De lá para cá pouco mudou, diga-se de passagem. Continuamos tão desumanos quanto sempre, porém com o inconveniente das redes sociais que nos obrigam a fingir a piedade que não temos. 

Todos os dias somos confrontados com este caráter pérfido tão próprio da humanidade. Agora mesmo muitos de nós se questionam a respeito da indiferença geral sobre os mais de cem mil mortos pela pandemia do Covid-19 com a mesma desenvoltura fria dos banhistas que brincavam alegremente ao lado dos corpos gélidos das vítimas da queda da ciclovia Tim Maia em 2016. 

Pois é, é a mesma cena de novo. E de novo. 

Verdade seja dita, se temos um presidente que dispara “E daí” para cinco mil mortos é porque este é um valor para parte considerável de seu povo. Assim como também há o senso comum de que o lucro do patrão está acima da dignidade humana. Se no Carrefour um trabalhador morto tem o cadáver oculto para não atrapalhar as vendas por uma hora que seja, em um mercado menor da rede Ricoy os seguranças concluíram que o mais sensato era chicotear um jovem negro suspeito de furto. 

Pode não parecer, mas sequer há senso de proporções para quem não rompeu a senzala mental estabelecida com tanto êxito por nossos padrastos fundadores. Assim como há pouco senso de comunidade e de solidariedade, também falta o senso de classe. A gerência da loja preza tanto pela empresa que prefere a indignidade de quem está maus perto do que melindrar a poderosa chefia da organização. 

O que é mais curioso é que ao fim os zelosos capitães do mato podem ser demitidos para aplacar a ira pública. A rede já fez isso no episódio do cão em Osasco. Se o raio caiu duas vezes no mesmo lugar e se nem uma situação limite inspira humanidade, imagine o que é a cultura deste ambiente de trabalho. Assim como no Brasil, vão-se os dedos e ficam os anéis.[left-sidebar]
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